Publicado em 23 de março de 2023 às 12:09
Nos últimos três anos, cresceu o número de famílias passando fome no Brasil, assim como aumentou a população com sobrepeso e obesidade.>
Apesar de contraditórios, esses dois cenários têm uma causa em comum, que é a falta de políticas de acesso à alimentação e a crise provocada pela pandemia da Covid.>
Isso refletiu também nas crianças: subiu o número de crianças abaixo do peso considerado normal e aumentou a proporção da população pediátrica com sobrepeso ou obesidade nos últimos quatro anos.>
Em 2018, 4,2% das crianças de 2 a 5 anos tinham peso abaixo do normal (que inclui magreza e magreza acentuada), enquanto 5,22% estavam com obesidade. Em 2022, essas taxas passaram para 4,36% e 5,34%, respectivamente. Em relação ao peso normal (eutrófico), a proporção foi de 64,55%, em 2018, para 65,33%, em 2022.>
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Já em relação às crianças de 5 a 10 anos, 4,08% das crianças estavam abaixo do peso, em 2018, contra 3,69%, em 2022. Também diminuiu a proporção de crianças eutróficas, de 65,49% para 63,23%.>
Por outro lado, em 2018 a proporção de crianças com obesidade e obesidade grave eram de 8,9% e 4,99%, passando para 10,15% e 6,03%, respectivamente, em 2022. Em números absolutos, são quase 500 mil crianças nesta faixa etária com obesidade no país, das quais 330 mil têm obesidade grave.>
Os dados são da plataforma Sisvan (Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional) do Ministério da Saúde. Os números trazem um alerta para os problemas relacionados à saúde e nutrição infantil, segundo especialistas.>
"A desnutrição na infância pode afetar o crescimento quando ela for prolongada, mas isso não significa que a criança com sobrepeso também não sofre consequências. Você pode ter uma criança com excesso de peso e falta de nutrientes", explica o coordenador de endocrinologia pediátrica do Sabará Hospital Infantil, Matheus Alvares.>
De acordo com ele, já é visível o aumento de crianças e adolescentes com complicações metabólicas por conta do sobrepeso. "E isso vai causar na vida adulta outros problemas.">
Assim como o acesso à saúde e à educação, o direito à alimentação também passa por um cenário desigual no país, explica Janine Coutinho, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).>
Para ela, o sobrepeso está relacionado ao aumento do consumo de alimentos ultraprocessados e processados no ambiente escolar e familiar, que carecem dos nutrientes necessários para o crescimento adequado das crianças. "São dois desfechos de um mesmo determinante que é o acesso e a forma como aquela família se alimenta.">
Dados do Enani (Estudo Nacional da Alimentação e Nutrição Infantil) de 2019 mostram que o consumo de ultraprocessados entre crianças menores de cinco anos foi de 93% no país, enquanto o de frutas e verduras foi de 27,4%. O relatório mais recente, de 2022, ainda não foi divulgado.>
A reportagem solicitou informações sobre as políticas públicas voltadas à saúde e nutrição infantil ao governo federal.>
Em nota, o MEC (Ministério da Educação) disse que o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) é considerado um eixo das políticas públicas destinadas à segurança alimentar e que o repasse federal previsto em 2023 é de R$ 5,5 bilhões (ante R$ 4 bilhões em 2022).>
Afirmou também que o preparo das refeições escolares segue o Guia Alimentar Brasileiro: é vedado, por exemplo, o fornecimento de ultraprocessados, açúcar e adição de adoçante para menores de três anos. Também é proibida a oferta de gorduras trans industrializadas em todos os cardápios, disse a pasta.>
O MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar) afirmou que foi recriado com o objetivo de fortalecer a produção familiar de alimentos saudáveis e, embora a "legislação vigente estabeleça, no mínimo, 30%, trabalha para que a aquisição de produtos da agricultura familiar alcance 100%".>
Existem 2,7 milhões de agricultores familiares cadastrados, segundo a pasta, e, além das ações com o MEC, o órgão promove ações de melhora da logística e espaços para oferta de produtos da agricultura familiar, como hortas urbanas e quintais produtivos.>
O Ministério da Saúde não respondeu até a publicação deste texto.>
Com o aumento do número de famílias com índice de pobreza extrema e passando fome, o consumo de alimentos in natura caiu. E, quando há a possibilidade de comer algo, são os salgadinhos e alimentos como macarrão instantâneo que são os mais acessíveis, afirma a pesquisadora do Idec.>
"Não dá para falar da fome sem falar da questão social, e isso piorou muito no país. Nós tínhamos uma certa proteção no preço dos alimentos básicos [projetada] até 2026, mas a pandemia antecipou isso, e o aumento foi proporcionalmente maior nos alimentos da cesta básica, como arroz, feijão e carne", observa.>
A dificuldade no acesso ao alimento torna, muitas vezes, a merenda escolar a única refeição diária de parcela significativa das crianças, mas mesmo esta sofreu nos últimos anos pela falta de políticas públicas, como o reajuste do valor repassado pelo governo federal, que ficou paralisado por cinco anos. Neste ano, Lula (PT) anunciou o reajuste de 39% do repasse para merenda escolar.>
Há ainda uma legislação que estabelece um percentual mínimo de 30% para aquisição de produtos provenientes da agricultura familiar na merenda escolar, mas essa taxa muitas vezes não é alcançada onde há falta de fiscalização ou onde a logística para entrega dos produtos é dificultada.>
Coutinho lembra que mesmo políticas de proibição da venda de ultraprocessados nas escolas não garantem totalmente a proteção das crianças, pois no entorno os produtos são comercializados livremente. "[Essa proteção] passa também por políticas de educação e legislação. Hoje, produtos orgânicos ou de agricultura familiar são até cinco vezes mais tributados do que os alimentos industrializados.">
Um projeto do IPTI (Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação) iniciado no último ano em escolas do município sergipano de Santa Luzia do Itanhy, a cerca de 77 km de Aracaju, auxilia a conexão de merendeiras e produtores familiares.>
Batizado de Nham (acrônimo para Nutrition for a Healthy and Appetizing Meal), o aplicativo se conecta a outro sistema também criado pelo instituto, chamado TAG, que tem informações de altura, peso, histórico de saúde e outros dados relevantes dos alunos na escola.>
As merendeiras usam os dados das crianças que estão na escola naquele dia e se elas têm necessidades especiais na dieta para elaboração do cardápio.>
"A partir daí, elas fazem as escolhas de acordo com as necessidades do dia pedem diretamente aos agricultores dos produtos", explica Saulo Barretto, um dos membros do conselho do IPTI e que coordenou este projeto. "A próxima etapa é a implementação de cursos de formação ofertados pelas próprias merendeiras em outras escolas.">
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