Nos voláteis tempos atuais, raros políticos mantiveram-se no poder durante tanto tempo quanto Angela Merkel. Ainda mais raros são aqueles que se comportaram com tamanha discrição e tamanho desinteresse em jogar para a plateia. Calma, cautelosa e consistente, foi denominada "a líder do mundo livre" pelo New York Times, devido a sua firme oposição aos descomedimentos de Donald Trump, título que a sua atuação diante da pandemia do Covid-19 só fez confirmar.
Foi sem dúvida uma figura de proa da política internacional nas primeiras duas décadas do século XXI. No entanto, não poucos analistas estão encarando a sua partida com alívio, como se a sua missão estivesse esgotada e agora a Alemanha precisa se preparar para o futuro.
Merkel foi a providencial timoneira da União Europeia em sérias turbulências, mas seus "pecados de omissão", nas palavras do historiador inglês Timothy Garton Ash, ainda vão dar muito trabalho. Sua liderança assegurou a unidade europeia na crise financeira de 2008 e na subsequente crise da dívida pública da Zona Euro, mas o superendividamento da Grécia não foi equacionado e segue ameaçando, como uma bomba relógio.
O acordo com a Turquia de 2016 organizou, minimamente, o fluxo de refugiados para os países europeus, porém está longe de representar uma solução duradoura para o problema. Os benefícios do acordo com a Rússia sobre o gasoduto Nord Stream 2 se tornam questionáveis à medida que a política externa de Vladimir Putin demonstra-se mais ousada.
O PIB alemão alçou-se a níveis recordes em 2019, impelido pelo superávit também recorde do comércio exterior, o qual, segundo os críticos, é por demais dependente das importações chinesas. Como um todo, a produção industrial alemã mantém-se eficiente, mas a matriz energética atual não levará à neutralidade de carbono em 2045, e a falta de objetivos mais ambiciosos para as emissões pode se tornar, a médio e longo prazos, desvantajosa para a indústria automobilística, cuja capacidade de inovação sofre com a agressividade das concorrentes americana e chinesa.
Outro óbice embaraçoso para um país das dimensões da Alemanha é o atraso digital (os turistas se espantam com a lentidão da internet alemã), ao passo que as enchentes de julho deixaram a descoberto a necessidade de preparar o país para as consequências da mudança climática.
Um outro flanco aberto é a posição alemã diante da insubordinação da Hungria e da Polônia a determinações da Corte de Justiça Europeia. Os governos ultraconservadores de János Áder e Andrzej Duda, que até aqui beneficiaram-se da condescendência de Angela Merkel, estão agora confrontados por multas de bilhões de euros, impostas pela Comissão Europeia. É de prever que o novo governo alemão apoiará essas medidas punitivas.
As pesquisas de opinião preveem que as eleições deste domingo para o Bundestag serão vencidas pelo Partido Social Democrata (SPD), que deverá suplantar o Partido Democrata Cristão de Angela Merkel. Olaf Scholz deverá ser o novo chanceler, ou chefe de governo. A margem da vitória será seguramente estreita e, assim, o SPD deverá formar uma coalizão com o Partido Verde e, provavelmente, com o Die Linke (A Esquerda).
Observamos, portanto, uma importante mudança dos ventos políticos nas relações internacionais. Com Joe Biden na Casa Branca, Justin Trudeau confirmado para um terceiro mandato no Canadá e governos de esquerda ou centro-esquerda na Noruega, Itália, Espanha, Portugal e agora também na Alemanha, a ênfase na austeridade deve arrefecer e recolocar as políticas de estímulo ao emprego, à saúde pública e à proteção do meio ambiente no topo da agenda mundial.
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Em recente artigo para a Tagesspiegel, a jornalista alemã Anna Sauerbrey refere-se ao imenso cartaz armado no centro de Berlim com os dizeres "Tschuss Mutti", que podem ser traduzidos como "Tchau, mãezinha", e prevê que muitos alemães hão de lembrar com saudade de Angela Merkel. Não obstante, acrescenta: já deu, está na hora. Tchau, mamãezinha.
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