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É psicóloga, doutora e postdoc pela PUC-SP, especialista em saúde mental e direitos das mulheres

Outubro Rosa: sobre câncer de mama e a dor emocional que merece ser escutada

Muitas mulheres relatam o diagnóstico de câncer logo após uma perda devastadora, um divórcio traumático ou uma violência

  • Gina Strozzi É psicóloga, doutora e postdoc pela PUC-SP, especialista em saúde mental e direitos das mulheres
Publicado em 05/10/2025 às 14h00

A medicina contemporânea já nos deu certezas sólidas: o câncer de mama é uma doença provocada por mutações genéticas que levam células a se multiplicarem sem freio. Idade, fatores hormonais, histórico familiar, tabagismo, álcool, obesidade e poluição, tudo isso já está documentado como determinante. O câncer não é castigo. Não é punição moral.


Mas há um terreno delicado, onde ciência e experiência humana ainda se encontram em silêncio. Muitas mulheres relatam o diagnóstico de câncer logo após uma perda devastadora, um divórcio traumático ou uma violência. Coincidência? Talvez. Mas estudos vêm tentando mapear essas correlações.

Câncer de mama, outubro rosa
Câncer de mama: Outubro Rosa, mês de conscientização sobre a doença. Crédito: Shutterstock

Pesquisas sobre transtorno de estresse pós-traumático (PTSD) apontam uma associação com risco aumentado de alguns tumores ginecológicos, como mostrou Roberts e outros (2019) em mulheres com PTSD e câncer de ovário. Kaster e outros (2019) revisaram dados de trauma e risco de câncer, sugerindo que os impactos variam por tipo tumoral, mas que a hipótese não pode ser descartada. E uma revisão recente de Pereira e outros (2021) incluiu luto e depressão entre os fatores psicológicos investigados em câncer de mama e pulmão, admitindo que os resultados são inconsistentes, mas pedindo novos métodos e maior rigor.

Esses trabalhos não provam que dor emocional causa câncer. Mas reforçam que o sofrimento crônico pode facilitar sua instalação, seja pela supressão imunológica, pelo aumento de processos inflamatórios sistêmicos ou pela indução de comportamentos de risco (como tabaco, álcool, má alimentação, sedentarismo). A linha causal direta permanece incerta, mas a relação indireta parece cada vez mais plausível.

Entre as mazelas emocionais que tantas mulheres atravessam, há os desertos do abandono: quando o diagnóstico de câncer chega, não são poucas as que se veem deixadas pelos companheiros — estudos indicam que cerca de 20% das mulheres são abandonadas ou enfrentam rupturas conjugais após a descoberta da doença, um número significativamente maior do que entre homens com câncer.

A rejeição, a humilhação e o preterimento constituem feridas tão profundas quanto a própria patologia. E aqui a palavra grega páthos, de onde nasce “patologia”, nos revela um sentido mais originário: páthos é a indignação do corpo, o grito da alma que não suporta mais silenciar. A psicossomática, nesse horizonte, não é uma fantasia, mas a tradução visível daquilo que o espírito não conseguiu elaborar em silêncio. O corpo é o invólucro da alma: quando ela sangra em lágrimas invisíveis, o envelope físico se rompe em sintomas, como se a carne expressasse o mal-estar que nasce lá dentro.

Enquanto esse enigma não se resolve, o que já sabemos não pode ser esquecido: o câncer de mama é o mais incidente entre mulheres no mundo, com cerca de 2,3 milhões de novos casos por ano e aproximadamente 670 mil mortes em 2022. As projeções da Lancet Oncology (2025) indicam um aumento de 38% na incidência e 68% nas mortes até 2050. No Brasil, o INCA estima cerca de 73,6 mil novos casos por ano no triênio 2023–2025. A diferença entre vida e morte está no tempo: diagnosticado cedo, a sobrevida em 5 anos chega a 99% nos casos localizados; em estágio metastático, cai para 32%. A biologia não espera.

Por isso, Outubro Rosa não é só uma campanha, é uma convocação: fazer exames regulares, conhecer seu corpo, exigir acesso ao rastreamento. E, ao mesmo tempo, reconhecer que a dor emocional também precisa ser cuidada, porque fragiliza escolhas, silencia vozes, compromete adesão ao tratamento e rouba vitalidade.

O câncer de mama não é castigo: é, antes, um manifesto silencioso da fábrica de dor que se instala no porão da vida feminina. As mamas, símbolos de afeto, nutrição e desejo, se tornam também o território onde se inscrevem os desafetos, as rejeições e as ausências que atravessam a experiência das mulheres. Cada diagnóstico, portanto, não fala apenas da biologia, mas revela um corpo que expressa, em sua vulnerabilidade, marcas de uma alma que já adoecia em silêncio há tempos. O corpo fala quando o repertório vocabular da alma cessa.

Prevenção e educação, nesse cenário, são mais que técnicas ou instrumentos clínicos de saúde: são gestos de cuidado que reconhecem no corpo feminino não apenas a doença, mas também a dignidade de sua história com o direito a uma biografia sem dores e sem sintomas.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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