Marcos Ramos*
Parece inevitável não nos emocionarmos com histórias de superação. Casos como aquele da ex-empregada doméstica que se tornou juíza, após recolher livros do lixo para estudar, estampam os meios de comunicação, e digo: com toda a razão. A superação de tais dificuldades para alcançar determinado objetivo é, sem dúvida alguma, algo para ser contado.
>Faxineira se forma em Direito na faculdade em que trabalha no ES
Saber de alguém que conseguiu juntar dinheiro como diarista para fazer um curso de Inglês na Irlanda (ou ler sobre alguém que ganhou um carro do chefe, depois de ter andado 32 quilômetros para não chegar atrasado em seu primeiro dia de trabalho) proporciona combustível à esperança de quem pouco têm ou sonha em ter algo que até então lhes parece impossível.
Mede-se cicrano com a régua de beltrano e, por consequência, reafirma-se discurso moralizante baseado em “quem quer consegue
Logo é, de certa forma, confortante testemunhar uma recompensa final alcançada após esforços sobre-humanos ou um desfecho catártico – de histórias reais com requintes de tragédia – que valide todo o esforço prévio de um sujeito. Entretanto, tal validação acaba por reforçar uma ideia geral de mérito que, em regra, não existe.
E por quê? Porque dentro dessa validação meritocrática existe um divisor águas que segrega e ilude. De um lado, revela a água – escassa e rara – de quem conseguiu e conquistou, mas esconde um outro lado – de águas insalubres e difíceis de engolir – que representam uma realidade que ultrapassa a exceção noticiada. Realidade de quem fica à margem e não inspira best-sellers.
Não me levem a mal, peço. Não há problema algum em emocionar-se com tais narrativas, eu mesmo possuo certo repertório de superações em meu bolso. O problema se revela, porém, quando as tomamos como amostras de uma “realidade” que, na verdade, é inexistente dentro de um contexto social onde oportunidades são raras e desiguais e onde conquistas não dependem somente de esforços pessoais.
O problema se revela quando tomamos a exceção como regra, quando transformamos tais superações em argumentos que justifiquem o “fracasso” de determinado grupo social em comparação à conquista e “sucesso” de outro. O problema reside em romantizar o sofrimento alheio, fetichizando adversidades que deveriam ser evitadas ao invés de endossadas.
Mede-se sicrano com a régua de beltrano e, por consequência, reafirma-se um discurso moralizante baseado em “quem quer consegue”. Discurso que, na prática, segrega e impede o nascimento de pensamentos críticos que levariam à elaboração de ações afirmativas que evitariam a desumanização do sujeito na busca de algo.
Em vez de aplausos à “garra” dos garotos vietnamitas que atravessam um rio de mochilas nas costas para não perderem um dia de aula – transformando-os em poster children da determinação – há de haver uma reflexão sobre aquilo que causaria tais adversidades. É preciso, sim, discutir privilégios e concessões a determinados grupos sociais em detrimento da ausência de assistência e oportunidades a uma esmagadora maioria.
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*O autor é professor e mestre em Literatura pela Unesp
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