Há algo no tráfico que pode me ensinar a atrair jovens para a igreja

A grande pergunta é: por que não consigo levar uma criança para a catequese e o tráfico consegue levar para o crime?

Publicado em 15/08/2019 às 21h30
Atualizado em 29/09/2019 às 19h55

Padre Kelder*

Em setembro de 2017, dois jovens do Morro do Jaburu, em Vitória, conhecidos como Tonzinho e Dezessete, morreram em um acidente de moto em Gurigica. Eu havia encontrado com o Tonzinho no domingo antes do acidente. Eu estava descendo e ele subindo uma escadaria. Ele estava muito perfumado, então brinquei com ele perguntado se era o cheiro da santidade. Ele riu, me cumprimentou e continuou subindo as escadas a passos largos.

Uma confusão imensa se criou em torno das mortes destes jovens. Foi noticiado que devido às mortes o tráfico tinha decretado toque de recolher no Morro do Jaburu e na Avenida Leitão da Silva. É verdade que o comércio do morro foi fechado durante o velório e que houve confronto com um segurança do comércio na avenida, mas estava muito longe de ser um toque de recolher.

Os corpos foram velados em uma Igreja Evangélica Pentecostal. Estive lá durante a noite e deparei-me com uma multidão de jovens e adolescentes. Crianças circundavam os caixões e acariciavam o rosto de Tonzinho. O caixão de Dezessete estava fechado. A mãe de Tonzinho, uma senhora evangélica muito distinta, acompanhava tudo amparada por outras senhoras. A namorada de um deles estava presente e me apresentou a filhinha dele de cerca de três anos. Uma criança linda, como todas as crianças do Jaburu.

Padre Kelder

Muitas coisas aconteceram desde a morte desses jovens no Morro do Jaburu. As comunidades ficaram mais unidas e motivadas

Após o sepultamento, os amigos deles pediram para celebrar uma missa de sétimo dia. Foi uma das celebrações mais significativas que já presidi. A missa foi realizada na quadra, ao lado da Comunidade Nossa Senhora da Guia. Havia muitos jovens e adolescentes durante a celebração.

Todos acompanhando com muita devoção e respeito. A mãe do Tonzinho não participou da missa porque tinha uma atividade na igreja que ela frequenta, mas mandou uma carta comovente, muito agradecida pelo apoio que estava recebendo.

Muitas coisas aconteceram desde a morte desses jovens no Morro do Jaburu. As comunidades ficaram mais unidas e motivadas. O medo de falar sobre o tráfico e das relações com os agentes do tráfico aos poucos vai sendo superado.

Recentemente, ao sair de uma das comunidades, deparei-me com uma criança, acredito que com 11 ou 12 anos, segurando uma metralhadora. Eis o que questiono neste quinto artigo, que compõe uma série, em que narro a descoberta de valores cristãos na relação com os traficantes: o porquê não consigo levar uma criança para a catequese e o tráfico consegue levar para o crime? A resposta que sempre me vem é que algo muito errado acontece na sociedade e que o tráfico tem muito a me ensinar.

* É vigário episcopal para Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória

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