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É presidente da Associação dos Amigos dos Autistas do Espírito Santo (Amaes)

Crianças com autismo de hoje serão os adultos de amanhã: estamos preparados?

A sociedade ainda enxerga o Transtorno do Espectro Autista (TEA) como uma questão da infância — mas garantir dignidade e pertencimento também na vida adulta é um desafio urgente e coletivo

  • Pollyana Paraguassu É presidente da Associação dos Amigos dos Autistas do Espírito Santo (Amaes)
Publicado em 27/10/2025 às 08h30

Quando falamos em autismo, quase sempre a imagem que vem à mente é a da criança. Falamos de diagnóstico precoce, de intervenção precoce – e, sim, esses avanços mudaram muitas vidas. Mas o autismo não tem data de validade. As crianças crescem. Tornam-se adolescentes, jovens e adultos. E, infelizmente, é justamente aí que a sociedade se perde: porque ela ainda não aprendeu a enxergar o autista além da infância.

Sou mãe de um homem de 22 anos com autismo e deficiência intelectual. Já vivi de perto as conquistas e as dores de cada fase. O que vejo hoje é algo que chamo de “morte social”. É o momento em que a sociedade para de olhar, de convidar, de incluir. Meu filho nunca foi chamado para uma festa, para um encontro, para um simples café. Ele é um jovem inteligente, sensível, com um enorme desejo de pertencer — mas vive à margem. Invisível. E a invisibilidade dói tanto quanto a exclusão.

Essa “morte social” não é um problema individual, é um retrato coletivo. Ainda tratamos a pessoa com deficiência como um fardo social, e não como um cidadão de direitos. E isso precisa mudar. A Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) garante o direito à dignidade, à autonomia e à plena participação na sociedade. No papel, parece suficiente. Na prática, falta preparo, empatia e boa vontade.

Como padrões de conversa podem ajudar a identificar sinais precoces de autismo
Criança com TEA: 'Suporte para autistas adultos praticamente inexiste'. Crédito: Getty Images

No mercado de trabalho, as barreiras mais fortes não são as físicas — são as atitudinais. O preconceito estrutural ainda faz com que a deficiência seja confundida com incapacidade. Contrata-se por obrigação legal, mas sem criar condições reais de permanência e desenvolvimento. É preciso entender que acessibilidade não é apenas rampa e vaga reservada: é comunicação, adaptação, escuta e respeito.

Quando uma empresa abre espaço para uma pessoa com TEA, ela não está fazendo um favor. Está reconhecendo potencialidades. Muitos autistas têm hiperfocos extraordinários, atenção a detalhes e produtividade acima da média. Essas características, se bem acolhidas, podem gerar inovação e resultados. A inclusão, além de humana, é inteligente.

O Estado também precisa enxergar essa transição com responsabilidade. Hoje, o suporte para autistas adultos praticamente inexiste. A maioria dos atendimentos públicos se encerra na adolescência, e as famílias ficam sozinhas. Mas é justamente nessa fase que o apoio deveria aumentar: na construção da autonomia, da convivência social, da inserção profissional e da saúde mental.

A Associação dos Amigos dos Autistas do Espírito Santo (Amaes) atua há mais de 20 anos nessa linha de frente: oferecendo atendimento multiprofissional, orientação às famílias, capacitação aos profissionais e articulação com o poder público para garantir o cumprimento das leis e o avanço das políticas de inclusão. Nossa missão é dar voz às pessoas com autismo e mostrar que inclusão não é caridade, é cidadania. Cada vida acolhida representa um passo em direção a uma sociedade mais justa, empática e acessível.

O medo de toda mãe, como eu, é o mesmo: quem estará com ele quando eu não estiver mais aqui? A ausência de políticas contínuas transforma essa pergunta em um grito silencioso. A inclusão não pode ser uma fase — precisa ser um ciclo de vida.

Os números mostram que o futuro já chegou. Quando meu filho foi diagnosticado, há mais de 20 anos, a estimativa era de 1 autista a cada 168 nascimentos. Hoje, o dado mais recente aponta 1 a cada 36. São crianças, adolescentes e adultos que vão ocupar os espaços da sociedade — se a sociedade permitir.

Por isso, mais do que políticas, precisamos de humanidade. O autismo não é moda, não é tendência e não é apenas uma pauta de abril. É parte da nossa realidade, e o modo como escolhemos lidar com ela revela o tipo de sociedade que somos.

Incluir não é apenas abrir a porta. É validar a existência do outro.

E o que está em jogo aqui não é só o futuro das pessoas com autismo — é o nosso próprio futuro enquanto humanos.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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