É traficante, mas também um pai preocupado com o futuro das filhas

Ele é conhecido como o dono do morro. Todos falam dele com reverência e temor, inclusive o padre. Não via um traficante falando, mas um líder preocupado com os seus subordinados

Publicado em 07/08/2019 às 03h54
Atualizado em 29/09/2019 às 22h34

Padre Kelder*


Quando foi anunciada a criação da Paróquia Santa Teresa de Calcutá, muitos me interpelavam dizendo que eu era doido de trabalhar nos morros de São Benedito e do Bairro da Penha, onde o tráfico é intenso. Algumas pessoas chegavam a dizer que para subir nos morros tinha que pagar pedágio.

> Leia o artigo anterior: A greve da PM e o sentimento de Deus quando seu Filho foi crucificado

Eu respondia que o tráfico é onipresente, está em toda parte e que não via diferença alguma entre os pedágios para subir nos morros e os cobrados para atravessar a Terceira Ponte, a Rodovia do Sol ou a BR 101. E é exatamente o que problematizo neste quarto artigo, que compõe uma série, em que narro a descoberta de valores cristãos na relação com os traficantes.

Morando em Itararé há dois anos, subindo e descendo os morros diariamente, nunca me foi cobrado pedágio como me exigem quando passo pela Terceira Ponte, Rodovia do Sol e BR 101.

Padre Kelder

Na ocasião, defendeu que os jovens dos morros têm direito ao lazer e esclareceu que, ao final dos bailes, organizavam o local, deixando do mesma forma que encontravam

Logo que cheguei à Paróquia fui informado do baile funk que acontecia na quadra do Secri (projeto social da paróquia), em São Benedito. As informações eram de que a quadra tinha sido tomada pelo tráfico e que durante o baile havia a comercialização e consumo de muita droga, além de sexo e violência.

Fui conversar com o organizador do evento, sendo recebido por um jovem simpático e atencioso diante minhas ponderações. Ele é conhecido como o dono do morro. Todos falam dele com reverência e temor, inclusive o padre. Ele confirmou tudo o que eu relatei e disse que o que eu queria, ele também desejava para a comunidade. Disse ajudar no que pode e que as pessoas estavam sendo injustas em reclamar, porque quando precisam, ele está sempre pronto a ajudar, o que é uma verdade.

Na ocasião, defendeu que os jovens dos morros têm direito ao lazer e esclareceu que, ao final dos bailes, organizavam o local, deixando do mesma forma que encontravam. Não via um traficante falando, mas um líder preocupado com os seus subordinados.

Padre Kelder

Naquela tarde, aquele jovem pai me ensinou que temos muito que aprender sobre as periferias

Por fim, ele disse que tinha respeito pelas coisas de Deus e das Igrejas, e que nós não podíamos reclamar, pois as atividades religiosas eram respeitadas por eles. Contou que tinha duas filhas e não queria que elas tivessem a mesma vida dele. Novamente, não via ali um traficante, mas um pai de família, que teme a Deus e respeita o Sagrado.

Naquela tarde, aquele jovem pai me ensinou que temos muito que aprender sobre as periferias. Aprendi que, para além da demonização do tráfico, apontado como responsável pelas mazelas dos pobres, existem seres humanos que precisam ser ouvidos, compreendidos e respeitados. Aquele jovem pai traficante me ensinou que se houvesse políticas públicas adequadas nos morros, muitos problemas seriam evitados.

*O autor é vigário episcopal para Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória

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