• Rachel Martins

    Uma jornalista que ama os animais, assim é Rachel Martins. Não é a toa que ela adotou duas gatinhas, a Frida e a Chloé, que são as verdadeiras donas da casa. Escreve semanalmente sobre os benefícios que uma relação como essa é capaz de proporcionar

Rompimento brutal: como lidar com o luto após a perda violenta de animais de estimação

Publicado em 19/09/2023 às 18h53
O cão Churros assassinado em Guarapari

O cão Churros assassinado em Guarapari. Crédito: Acervo Pessoal

Era 9 de setembro, um sábado, mais um dia feliz para o golden retriever Churros, que havia completado três anos na sexta-feira (08/09). O cãozinho, dócil, com um nome, aliás, que remete à doçura, acordou cheio de energia, o que é muito comum à raça, e já começou a brincar com sua “mãe”, a influencer Iasmim Lima Peçanha Avelar, 32 anos, e o restante da família.

Desde que nasceu, Churros era a alegria da casa e sempre esperava ansiosamente a hora de passear com a família que tanto o amava e vice-versa. E dia 9 de setembro não foi diferente, estavam todos reunidos em casa, inclusive comemorando o aniversário de três anos do golden retriever, quando Iasmin resolveu levá-lo para um passeio, na companhia de seu esposo, de sua filha de um ano, e dois irmãos, um de 12 e outro de 9.

O que eles não esperavam é que naquelas ruas tranquilas de Guarapari, na região da Praia do Morro, iriam se deparar com o policial militar aposentado Anderson Carlos Teixeira, 52 anos, e muito menos com tudo o que aconteceu. Churros, o bebezão de três anos, abanando o rabinho, resolveu dar um pequeno pulo, certamente procurando brincar, no colo do policial.

Foi essa fração de segundos que selou, de forma violenta, o destino de Churros. O cãozinho pulou, mas logo se afastou, o que evidencia claramente, conforme as imagens das câmeras, que não se tratava de um ataque feroz. Mas o policial puxa uma arma, vai atrás dele e, sem dó nem piedade, o executa sumariamente com três tiros, apesar das súplicas das três crianças.

“O lugar, onde tudo aconteceu, é muito deserto. Churros sempre andou na guia. Neste dia, era um passeio breve, só para ele fazer as necessidades. Estava tudo calmo, ele nunca atacou ninguém, e resolveu se aproximar do policial, mas logo saiu e voltou ao nosso encontro abanando o rabinho. Quando vimos, esse homem já estava com a arma na mão, não tivemos tempo nem de reagir, apenas as crianças desesperadas começaram a suplicar para ele não atirar, daí foi só o barulho. Churros não morreu na hora, ele saiu correndo, e mesmo muito debilitado conseguiu andar até em casa. Imediatamente o levamos para a clínica veterinária, mas ele não resistiu. Foi o pior dia de nossas vidas”, conta Iasmim, chorando.

A tutora explica que, na hora, até pediram desculpa ao policial militar, mas que foi tudo tão rápido que não deu tempo para nada.

“Nunca vou entender o motivo que o levou a atirar, e na frente de três crianças, inclusive meu irmão de 9 anos estava praticamente agarrado ao Churros. Até entendo que algumas pessoas não gostem de cachorros, eu respeito. Mas para que tanta violência, ele poderia ter chutado, jogado uma pedra, ter feito qualquer coisa, menos o que fez e na presença de três crianças que estão muito abaladas emocionalmente”, explica, com a voz embargada, Iasmim.

Churros era membro da família. "Um filho de quatro patas", ressalta a tutora, que lembra, também, da frieza do policial militar após ter atirado.

“Minha vontade foi pular no pescoço dele, mas ele não guardou a arma logo, ao contrário, apontou pra mim, para o meu esposo, para as crianças, só depois foi embora calmamente como se nada tivesse acontecido. Foi desesperador! Meu irmão de 9 anos saiu correndo, nem conseguimos ir atrás dele, o encontramos aos prantos no chão da cozinha, pois precisávamos dar apoio também a nossa filha de um ano, a minha irmã de 12 e acudir o Churros”.

João Gama, Luca, Iasmin, André, Ryan, Yuli com o cão Gin, e Pietra Peçanha. No chão, Pedro Gama e Churros

João Gama, Luca, Iasmin, André, Ryan, Yuli com o cão Gin, e Pietra Peçanha. No chão, Pedro Gama e Churros. Crédito: Acervo Pessoal

A família está despedaçada, porque Churros, além de ser o filhote tão esperado de um outro cachorro de Iasmin, era a alegria da casa do seu pai, um verdadeiro xodó, companhia das crianças e de um outro filho, com autismo leve, do esposo dela.

“Está doendo, não só a perda do Churros, mas o trauma que ficou registrado em nossa memória. Ainda bem que ele ainda conseguiu chegar na casa do meu pai andando, mesmo que debilitado, se tivesse morrido na hora, seria tudo mais difícil. As crianças estão tentando seguir, mas choram muito e não querem ir pra escola, só querem dormir com meu pai e minha madrasta. Todos estão muito assustados”, ressalta, preocupada, Iasmin.

COMO VIVER O LUTO

Para a professora de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Edinete Rosa, uma criança que presencia a morte violenta de seu animal de estimação pode desenvolver o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), que é uma resposta comportamental que se apresenta ao sofrer ou presenciar um evento negativo não esperado.

“Esse transtorno se apresenta em forma de pesadelos, fobia social, autodepreciação, podendo chegar ao desenvolvimento de outros transtornos, como o disruptivo (agressividade com outras pessoas) ou a depressão. Quanto mais cedo as crianças, ou mesmo os adultos, receberem um acompanhamento de um profissional da área de saúde mental, maior serão suas chances de superação”, alerta.

Ela explica, ainda, que cada pessoa responde de uma forma aos eventos estressores da vida. A ausência de choro ou mesmo a falta de expressão verbal do sofrimento causado pela perda de pessoas queridas ou de animais de estimação não elimina as chances de que ela desenvolva o TEPT, porque não significa que ela não esteja sofrendo. Por isso, o recomendável é que todos tenham acesso a uma ajuda para que os efeitos negativos de um trauma sejam superados ou amenizados.

Segundo a professora da Ufes, a perda de animais de estimação por morte natural já traz um sofrimento enorme para as crianças, porque conforme a idade e maturidade cognitiva, elas não possuem ainda a noção de morte. Até por volta dos cinco anos, por exemplo, elas não compreendem a morte como um fato definitivo e imaginam que foram abandonadas.

“Nessas condições, os familiares podem explicar o processo natural da morte. Mas no caso da perda do animal por uma violência, a explicação e o processo de superação terão que incluir outros elementos que a criança ainda não está preparada para entender. Nesse caso, a família ou o profissional terá que conduzir o tema com mais atenção para que outros sentimentos ruins não predominem no lugar do luto. É uma tarefa difícil”.

"A sociedade precisa entender que a violência é um mal para todos e não só para quem a sofre diretamente. Todos perdem com a violência praticada por um"

"A sociedade precisa entender que a violência é um mal para todos e não só para quem a sofre diretamente. Todos perdem com a violência praticada por um"

Edinete Rosa, professora de Psicologia da Ufes

Edinete Rosa lembra que os animais de estimação têm um papel importante na família, seja por expressar um valor no sentido da dimensão da vida e dos afetos ou por ocupar um espaço de ajuda na convivência e na superação de situações difíceis. Em qualquer das duas hipóteses, o animal ocupa um lugar de extrema importância na configuração e nas relações familiares.

“Crianças que convivem com animais são geralmente mais afetuosas e socializadas. Desenvolvem mais a empatia e enriquecem a sua comunicação verbal e não verbal. Daí a importância da presença dos animais de estimação na vida delas, principalmente em tempos de excessivo uso de meios eletrônicos nas interações, o que vale também para adolescentes”, conclui.

RAÇA EXTREMAMENTE DÓCIL

Na opinião da médica-veterinária Manoela Pimentel o golden retriever é uma raça extremamente dócil. “Apesar de já ter visto um ou outro ser parcialmente agressivo com outro animal, não tenho ciência de agressividade contra pessoas”, explica.

Pelas imagens do vídeo, ressalta a médica-veterinária, Churros estava apenas querendo socializar e brincar. “Tanto que ele pula e sai”, garante.

"Um cão quando ataca, ele pula e morde e normalmente não sai enquanto não vê a presa abatida"

"Um cão quando ataca, ele pula e morde e normalmente não sai enquanto não vê a presa abatida"

Manoela Pimentel, veterinária

Ele destaca que, dificilmente, um cão ataca alguém repentinamente, é importante sempre estar atento aos sinais corporais que os animais emitem. “De qualquer maneira, é recomendável utilizar a guia durante os passeios em espaços públicos. Já em relação às focinheiras, elas podem ser utilizadas somente naqueles animais que possuem algum grau de agressividade”.

ENTENDA OS DESDOBRAMENTOS DO CASO

Após dar os tiros no golden retriever, o policial militar foi encaminhado à Delegacia Regional de Guarapari, onde foi autuado em flagrante por maus-tratos aos animais e encaminhado para o Centro de Detenção Provisória de Guarapari. A tutora do cachorro, por sua vez, assinou um termo circunstanciado (TC) por não guardar com a devida cautela animal perigoso e foi liberada após assumir o compromisso de comparecer em juízo.

No domingo (10/09), um dia, portanto, após o episódio, o policial militar passou por audiência de custódia e foi liberado sem fiança, mas com uma série de medidas cautelares.

E no último dia 13/09, a deputada estadual Janete de Sá realizou uma oitiva da Comissão Parlamentar de Inquérito de Combate aos Maus-Tratos contra Animais, da qual é presidente, na Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales), onde foram exibidas imagens que mostram como o fato aconteceu. O policial, embora convocado, não compareceu para prestar esclarecimentos.

Neste mesmo dia, a Justiça decidiu devolver a arma para o policial militar. Na decisão, o juiz Edmilson Souza Santos alega que o militar, policial reformado, precisa da pistola 9mm “para a sua defesa” e que não “há prova de que o indiciado não possa ter o porte de arma”.

Além disso, diz que o fato, por si só, “não pode ser mola propulsora de suspensão de porte de arma de fogo”. Algumas medidas cautelares também foram suspensas e Anderson Carlos Teixeira foi autorizado a retornar para Minas Gerais, onde se encontra no momento. Ele vai responder ao processo em liberdade.

CPI DOS MAUS-TRATOS

Segundo a deputada Janete de Sá todos os depoimentos prestados durante a CPI são de extrema importância na investigação. A tutora de Churros relatou com riqueza de detalhes como tudo aconteceu. Além disso, o médico-veterinário que atendeu o cachorro também contou como foi o ferimento, indicando que o tiro foi disparado de cima para baixo e que mesmo sentindo dor, Churros não foi agressivo.

“Tudo isso, além das imagens registradas na hora do crime, deixam muito claro que o Churros não atacou, ele queria brincar. E o policial não usou nenhuma outra forma para conter o animal. Ele foi atrás e atirou friamente”, declara.

A parlamentar ressalta que ficou surpresa com a decisão do juiz que liberou o suspeito para sair do Estado e ainda com a arma do crime. “Só posso crer que esse juiz não viu as imagens do crime, porque tudo está muito claro. A equipe jurídica da CPI já está em contato com o Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES) porque agora cabe ao órgão tomar as medidas para reverter essa decisão. Também estamos com outras medidas que não podem ser divulgadas para não atrapalhar o andamento do caso”, explica.

Já a Procuradora de Justiça Criminal, Edwiges Dias, que está à frente da Coordenação de Proteção e Defesa da Fauna, do MPES, afirma que está acompanhando todos os procedimentos apurados até o momento em desfavor do policial militar, com o intuito de assegurar a sua responsabilização nas esferas criminal e cível pelo crime praticado.

“A indignação do MPES com a atitude violenta e gratuita adotada pelo policial militar da reserva contra o cãozinho Churros vai além da questão moral e ética que regem a sociedade, mas principalmente pelo direito à vida do animal que foi injustificadamente saqueada, razão pela qual essa instituição está comprometida nesta luta"

“A indignação do MPES com a atitude violenta e gratuita adotada pelo policial militar da reserva contra o cãozinho Churros vai além da questão moral e ética que regem a sociedade, mas principalmente pelo direito à vida do animal que foi injustificadamente saqueada, razão pela qual essa instituição está comprometida nesta luta"

Edwiges Dias, procuradora

JUSTIÇA PARA CHURROS

Para a advogada Menara Coutinho Carlos de Souza, especialista em Direito Criminal, ele poderá responder por maus-tratos a cão com resultado morte (artigo 32, parágrafo 1º-A e §2º da Lei 9.605/98), cuja pena é de 2 a 5 anos de reclusão, acrescida de causa de aumento de 1/6 a 1/3, multa e proibição de guarda. Esta lei foi alterada pela Lei nº 14.024/20 (Lei Sanção), tornando a pena mais dura para casos como esses.

“Além disso, a família tutora do animal pode propor uma ação na justiça requerendo indenização por danos materiais e morais. No primeiro caso, se o animal tiver sido comprado, será devido o valor pago por ele àquele que sofreu o prejuízo econômico, corrigido e atualizado monetariamente, da data da compra. No segundo, toda a família teria direito, em decorrência do grave abalo moral sofrido pela perda do ente querido”, explica.

Por outro lado, explica a advogada, a tutora pode responder administrativamente. A Lei nº. 3.804/2014, do Município de Guarapari, prevê que todo animal, ao ser conduzido em vias e logradouros públicos, deverá usar obrigatoriamente coleira e guia adequadas ao seu porte e ser conduzido por pessoa com idade e força suficientes para controlar seus movimentos.

Na opinião do advogado Breno Panetto Morais, presidente da Comissão de Direitos dos Animais, Combate aos Maus-Tratos e Direito Médico Veterinário, da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Espírito Santo (OAB-ES), as imagens mostram claramente um triste caso de execução, um crime contra um animal.

"Precisamos mudar a cultura que coloca o animal como objeto. As leis que os protegem, especialmente a Lei Sanção que tornou a pena mais dura para casos como esses, são um avanço e vem gradativamente mudando essa situação. Se a pessoa maltratar, ferir, abandonar ou matar deve sofrer as sanções, penas e consequências legais cabíveis"

"Precisamos mudar a cultura que coloca o animal como objeto. As leis que os protegem, especialmente a Lei Sanção que tornou a pena mais dura para casos como esses, são um avanço e vem gradativamente mudando essa situação. Se a pessoa maltratar, ferir, abandonar ou matar deve sofrer as sanções, penas e consequências legais cabíveis"

Breno Panetto Morais, presidente da Comissão de Direitos dos Animais da OAB-ES

Além disso, na opinião do advogado, no Brasil, infelizmente, não apenas a lei de combate aos maus-tratos contra os animais têm sua eficácia punitiva questionada pelos cidadãos, mas as leis penais, em geral.

“O sentimento de impunidade traz essa indignação em muitos casos. Esse não é diferente. Precisamos como sociedade cobrar a eficácia das leis e da efetiva aplicação das sanções e penas previstas, respeitadas as garantias e direitos constitucionais”.

Breno ressalta, ainda, que participou da primeira oitiva realizada pela CPI dos Maus Tratos da Ales e que a Comissão da OAB-ES vai auxiliar na construção de elementos de prova que possam subsidiar a atuação do MPES e da Justiça no caso.

A Prefeitura de Guarapari, através da Secretaria de Saúde (Semsa), informou por nota, que conforme a Legislação Municipal, todo animal ao ser conduzido em vias e logradouros públicos deverá usar, obrigatoriamente, coleira e guia adequada ao seu porte, além de ser conduzido por pessoa com idade e força suficiente, para controlar seus movimentos. Quanto à fiscalização, elas são realizadas conforme denúncias.

A Polícia Civil do Espírito Santo (CPES) informou por nota que o suspeito, de 52 anos, conduzido à Delegacia Regional de Guarapari, foi autuado em flagrante por maus-tratos aos animais e encaminhado para o Centro de Detenção Provisória de Guarapari, onde passaria por audiência de custódia. A dona do cachorro, 32 anos, assinou um termo circunstanciado (TC) por não guardar com a devida cautela animal perigoso, e foi liberada após assumir o compromisso de comparecer em juízo. O procedimento foi lavrado pela Central de Teleflagrante e relatado ao Ministério Público Estadual (MPES), para prosseguimento com possível denúncia e início da ação.

A coluna enviou e-mail para a assessoria de imprensa da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) questionando se procede a informação de que o policial militar aposentado teria atuado junto à cavalaria da corporação e, como se trata de cuidados com animais, se ele já havia recebido alguma advertência por maus-tratos aos equinos. Além disso, foi perguntado se estão apurando os fatos e quais serão as medidas tomadas. Até o momento, não foram respondidos os questionamentos, assim que obtivermos retorno, a matéria será atualizada.

CONSIDERAÇÕES DA COLUNISTA

É notório que os maus-tratos aos animais estão crescendo substancialmente em todo o Brasil. Diante disso, quem atua na causa animal sempre faz o mesmo questionamento: se existem leis para que casos como o de Churros sejam punidos com rigor, por que, com raras exceções, a pena não é aplicada de forma eficaz?

Não adianta termos leis que não são aplicadas na sua essência. O não cumprimento da lei só corrobora, principalmente para quem pratica o crime, com a certeza da impunidade, deixando a sociedade insegura.

Elaborar leis para a proteção dos animais, sem dúvida, é um grande avanço, e já tivemos muitas conquistas, mas as punições determinadas por elas ainda são tímidas em relação ao número significativo de casos de maus-tratos contra animais.

O caso do Churros merece, sem dúvida, uma punição a altura da gravidade do fato. O caminho é longo, a luta é grande, mas muito importante. Não podemos deixar que essa barbárie caia no esquecimento. Que a justiça seja feita!

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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