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"Quem tem fome de pão também tem fome de palavra", diz padre Júlio Lancellotti

Sacerdote virá ao ES para participar da 1ª Festa Literária Internacional Capixaba e falou sobre seus trabalhos humanitários e relação com a leitura

Felipe Khoury

Repórter / [email protected]

Publicado em 9 de outubro de 2025 às 12:15

O padre Júlio Lancellotti tem forte atuação com pessoas em situação de rua
O padre Júlio Lancellotti tem forte atuação com pessoas em situação de rua Crédito: Reprodução/Instagram/@padrejulio.lancellotti/@vi_angelo

Às vésperas de participar da 1ª Festa Literária Internacional Capixaba (FLINC), nesta sexta (10), em Vila Velha, o padre Júlio Lancellotti conversou com HZ sobre diversos assuntos. No bate-papo, o sacerdote falou da sua relação com a literatura, trabalhos voltados a pessoas em situação de rua e das vindas ao Espírito Santo.

Foram cerca de 30 minutos de entrevista por telefone (que você confere no final da matéria). E entre as quase vinte perguntas respondidas, o padre disse uma frase que me atravessou. 

Quem tem fome de pão também tem fome de palavra

Padre Júlio Lancellotti virá ao Espírito Santo nesta sexta-feira (10)
Padre Júlio Lancellotti virá ao Espírito Santo nesta sexta-feira (10) Crédito: Reprodução/Instagram/@vi_angelo/@padrejulio.lancellotti

Sobre o direito das pessoas à literatura, o Lancellotti é direto ao afirmar que é preciso alcançar, sobretudo, quem vive nas ruas: “Nada é neutro. Ler o mundo, a própria vida, é parte do compromisso com um mundo mais fraterno”.

Por incrível que pareça, o livro mais pedido (nas ruas) é a Bíblia

O padre Júlio Lancellotti tem uma forte trajetória pastoral e humanitária
O padre Júlio Lancellotti tem uma forte trajetória pastoral e humanitária Crédito: Reprodução/Instagram/@vi_angelo/@padrejulio.lancellotti

A trajetória pastoral e humanitária de Lancellotti chama atenção por ser um dos nomes mais reconhecidos da defesa dos direitos humanos no Brasil. Sacerdote da Arquidiocese de São Paulo e coordenador da Pastoral do Povo de Rua, ele atua há décadas na linha de frente do cuidado com pessoas em situação de rua.

Desde o acolhimento cotidiano (refeições, documentação, acesso a saúde) à pressão pública por políticas que combatam a violência institucional, o padre é uma referência ética, principalmente, por unir presença concreta nas ruas, denúncia de violações e mobilização social.

O que motivou sua participação na 1ª Festa Literária Internacional Capixaba? O que espera dessa conversa com o público do Espírito Santo?

  • Eu vou com alegria, espero encontrar pessoas que gostam de livros e que possa ser um encontro que possa dialogar, falar de interesses e saberes.

O que deseja que as pessoas levem para casa depois do encontro: uma indignação, um gesto prático, uma leitura, uma mobilização?

  • A leitura nos ajuda a ter um compromisso. Eu acredito que as pessoas possam encontrar textos, autores, que se comprometem a tomar um mundo mais fraterno.

Como a literatura entrou na sua vida e no seu ministério?

  • A literatura entrou na minha vida desde a primeira infância. Eu vi minha mãe lendo, aprendi as letras através das capas dos livros dela. O Papa Francisco deixou muito claro o papel da literatura na formação. Você não pode ler o mundo dos seus pontos de vista. É preciso ler do ponto de vista do outro.

Em um país de tantas urgências, por que insistir que ler é um direito - inclusive (e sobretudo) para quem está em situação de rua?

  • Para ler o mundo, ler a própria vida, a própria situação. Nada é neutro, nem o que você lê. As palavras estão no marketing, nas narrativas. Quem tem fome de pão também tem fome de palavra. Nós não somos gavetas, somos uma pessoa. E esse trabalho é feito na convivência. Conviver é conflitivo. Não falamos que conviver é no paraíso, temos que conviver na tempestade também.

Se há resistência quando a pauta é cultura para quem vive nas ruas? Como o senhor contorna?

  • Essa invisibilidade da pessoa que está em situação de rua também nega que essa pessoa possa querer falar. Como é negado o pão e o agasalho, também é negado aos livros e ao afeto. E assim a pessoa fica cancelada.

O senhor coordena uma biblioteca em São Paulo voltada para pessoas em situação de rua. O que essa biblioteca representa na prática?

  • A biblioteca não é um privilégio de classe social. As pessoas, quando estão lendo um livro, se identificam com personagens, elas riem, choram. O mundo não é só o sofrimento e os livros levam a vários caminhos.

Que títulos mais circulam entre eles? O que surpreende nesses interesses de leitura?

  • É interesse que eles querem ler de tudo. Mas por incrível que pareça, o livro mais pedido por eles é a Bíblia. Até fizemos uma versão com capa própria para eles.

Como o senhor enxerga iniciativas de censura a livros em escolas e bibliotecas? O que isso causa na ponta, onde o senhor atua?

  • A censura deveria ser substituída pelo discernimento. É preciso discernir o que estão vendo. Nós não podemos censurar as pessoas, cortar os olhos para que elas enxerguem o que nós queremos. É preciso que elas enxerguem os desafios, as manipulações, e a partir disso saber fazer escolhas.

Qual foi a cena mais transformadora que viveu recentemente - e que ainda reverbera no seu modo de agir?

  • Para mim, o que fica sempre muito forte e reverbera é ler os evangelhos. Não só nas letras, mas nas pessoas. Hoje, pela manhã, encontrei uma senhora tão enrugada, enrolada em um cobertor, suja e mal cheirosa. Eu me coloquei pertinho dela e abracei. Depois do abraço, ela disse que queria encontrar a família para ver se acolhia ela novamente. E fiquei surpreso porque ela disse que gostaria que procurassem no Facebook. Pedi para uma assistente social ajudá-la.

O que a rua ensinou ao padre (e ao leitor) que nenhum seminário ensinaria?

  • O que um menino de rua me falou há muitos anos atrás é que a rua é um lugar cheio de portas. Mas todas estão fechadas. Eu pensei que deveria abrir essas portas, ou pelo menos algumas delas.

Qual sua relação com o Espírito Santo: já esteve no Estado? Quais lembranças guarda?

  • Eu passei rapidamente, nunca fiquei muito tempo. Conheci um padre capixaba que marcou muito minha vida. O nome dele é Martinho Krohling. Um dia ele me abraçou e disse que eu ia sofrer muito na vida porque eu era muito sensível. Isso me marcou.

Já visitou o Convento da Penha ou outros pontos religiosos (Anchieta, mosteiros, festas)? O que pretende conhecer desta vez?

  • Conheci o Convento rapidamente na visita que fiz ao Estado. Estive com as irmãs que fizeram o manto de Nossa Senhora da Penha daquele ano.

Que mensagem deixaria às comunidades de fé e aos agentes culturais capixabas que trabalham com população vulnerável?

  • Aguentem firmes porque a nossa luta é uma luta solitária.

Se pudesse indicar um livro para começar e um gesto para hoje, quais seriam?

  • O livro que eu indico é da editora Vozes. Se chama “Jesus: Aproximação histórica”, do autor José Antonio Pagola. Já o gesto para hoje, é: “leve um copo de água para um catador”.

SOBRE A FLINC

O Espírito Santo sediará pela primeira vez uma Festa Literária Internacional. Com mais de 60 convidados e 30 atividades programadas, a 1ª edição da Festa Literária Internacional Capixaba (Flinc) acontecerá entre os dias 10 e 12 de outubro, no Parque Cultural Casa do Governador, em Vila Velha.

O evento será totalmente gratuito e promete ser um ponto de encontro singular para amantes da literatura e da cultura. Além do Padre Júlio Lancellotti, nomes como Pepetela, Suely Bispo e Geni Nuñez também farão parte da programação do evento.

Suely Bispo é homenageada no 31º Festival de Cinema de Vitória
Suely Bispo foi a homenageada no 31º Festival de Cinema de Vitória Crédito: Sergio Cardoso

A Flinc nasce com o propósito de fortalecer a cena artística capixaba, atualmente em plena expansão. Idealizada e curada pela doutora em Literatura Isabella Baltazar, o festival tem o objetivo de criar um espaço de celebração, reflexão e diversidade.

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