Priscila Olegário: "Para o negro conseguir chegar em algum lugar precisa ser excepcional"

Soprano, destaque de "Natal de Todos os Sons", concerto deste sábado (16), no Sesc Glória, em Vitória, conversou com HZ, debatendo temas como racismo, amor pela música erudita e a importância da formação de plateia

Priscila Olegário é atração no concerto

Priscila Olegário é atração no concerto "Natal de Todos os Sons", em cartaz neste sábado (16), no Sesc Glória, em Vitória. Crédito: Divulgação

Uma mulher negra, brasileira, que é referência internacional na música erudita, cantando ópera. A soprano Priscila Olegário se apresenta com a Orquestra Sinfônica do Espírito Santo (Oses), com regência do maestro Helder Trefzger, às 20 horas, neste sábado (16), no Sesc Glória, em Vitória. A apresentação faz parte do circuito "Natal de Todos os Sons", do Sistema Fecomércio-ES.

Priscila Olegário foi a primeira negra brasileira a cantar o papel de Aida, famosa ópera de Verdi, no Theatro Municipal de São Paulo, em 2022. Antes disso, já tinha feito o mesmo papel em muitos palcos europeus, como no Teatro di San Carlo, em Nápoles (Itália). Em 2023, realizou uma série de concertos em homenagem aos 100 anos de Maria Callas, no Festival Internazionale della Valsugana, em Trento, cidade também italiana.

A artista integrou a Accademia Verdiana, no Teatro Regio di Parma, na Itália, e tem uma longa trajetória no meio musical. É mestre em performance pelo Conservatório Real de Bruxelas e bacharel em Canto Lírico pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Um currículo invejável, que denota um talento praticamente inato. 

Em entrevista exclusiva a HZ, ela conta um pouco da sua trajetória de sucesso, fruto de resistência e enfrentamentos diários desanimadores, mas que lhe dão a satisfação de ser referência para uma nova geração de mulheres negras na música clássica.

"Preparamos um concerto de Natal bem vibrante, dinâmico, com áreas escolhidas a dedo. Está bem bonito o programa. Passará por clássicos como "Silent Night", de F. Grubber, a abertura da ópera "As Bodas de Fígaro"; a ópera "Carmen", de Bizet; e "Oh, Noite Santa!", de Adolphe Adam. Serão momentos de muita emoção", destaca a talentosa artista. 

Como foi o início da sua carreira e quando começou o amor pela música clássica? Consegue lembrar de sua primeira relação com os grandes mestres?

Minha relação com a música vem desde cedo, minha família é muito musical. Morava com meus avós, meu avô tocava violão sertanejo, a musicalidade sempre esteve na minha casa. A questão com a música clássica se deu por acaso. Quando era adolescente, comecei a me interessar por rock e heavy metal, queria tocar guitarra. Ganhei uma guitarra de presente, mas como não tinha condições de fazer aulas, tentei aprender sozinha. As revistas de música traziam partituras, então imaginei que se aprendesse a lê-la, conseguiria tocar as músicas que gostasse. Abriu vaga para o coro amador, em São Paulo, e uma das condições para participar era frequentar as aulas de teoria musical. Vi ali a possibilidade de aprender a ler partitura e me inscrevi. No coro, descobri a música clássica e me apaixonei. Assim iniciei todo meu percurso.

Você é uma artista negra, de talento reconhecido internacionalmente. Logo pensamos em representatividade. A dificuldade de artistas negros, brasileiros ou não, embarcarem nessa arte, sempre ligada à cultura eurocêntrica, continua?

Infelizmente, ainda hoje, no século 21, a gente tem essas barreiras estruturais, que não acontecem só no Brasil. Vivenciei o racismo também em outros países, no meio do teatro, mas lá fora, às vezes, sinto que tenho até mais espaço que no Brasil. É muito complicado, você sempre tem que ser duas, três vezes melhor que a pessoa que está concorrendo contigo. Isso não é humano. Nós não somos máquinas, somos passíveis de erro, como os brancos são, como todos são, só que para o negro conseguir chegar em algum lugar, precisa ser excepcional. E isso é quase uma batalha perdida: ou você é muito teimoso, muito insistente e decide encarar todos os dias, ou simplesmente abandona porque a dificuldade, a desigualdade, é desleal. Tenho que estudar três vezes mais que meus concorrentes só pelo fato de ser negra? Isso não deveria ser correto. É desanimador. Mas ainda bem que as coisas estão melhorando, mudando para melhor. Hoje podemos falar sobre isso, denunciar muitas vezes e, assim, continuar nossa jornada. Temos que permanecer na luta, porque outras gerações estão vindo. Assim como me inspirei em alguém, nossa geração precisa inspirar a próxima.

Vivenciei o racismo também em outros países, no meio do teatro, mas lá fora, às vezes, sinto que tenho até mais espaço do que no Brasil. É muito complicado, você sempre tem que ser duas, três vezes melhor que a pessoa que está concorrendo contigo. Isso não é humano. Não somos máquinas, somos passíveis de erro, como os brancos são, como todos são, só que para o negro conseguir chegar em algum lugar precisa ser excepcional

Como é ser a primeira negra brasileira a cantar o papel de Aida, famosa ópera de Verdi, no Theatro Municipal de São Paulo Dá um sabor de trabalho reconhecido?

Mais do que sabor de trabalho reconhecido, dá um sabor de justiça. Aida é uma personagem escrita, em teoria, para ser uma negra. É etíope. Como estamos falando de ópera, uma cultura eurocêntrica, não sou purista de achar que ela só deve ser feita por cantoras negras. O teatro dá a licença poética. O que me incomoda é pegar uma artista branca e fazer blackface, o que é muito comum na Itália, por exemplo. Isso, pra mim, não dá para aceitar. Se quiser colocar uma cantora branca para interpretar um personagem de outra etnia, que seja interpretando como branca, como muitas Aidas que foram referências para mim, cantoras italianas brancas maravilhosas. Mas se fizer questão de representar a etnia, então escolha cantores de acordo, sejam negros e japoneses, por exemplo.

Ao ver tanta paixão pela música erudita, pinta uma dúvida: tem algum compositor preferido?

Meu autor preferido é Verdi, o autor da Aida e de outras óperas que amo, como Attila, Requiem, Nabucco. Tive a oportunidade de estudar no teatro dele, quando fui selecionada para a Accademia Verdiana, onde me aperfeiçoei no repertório dele. Minhas referências vocais brasileiras são Benito Maresca, Edna D'Oliveira, David Marcondes, Geilson Santos. As internacionais, Renata Tebaldi, Maria Callas, Grace Bumbry, Jessye Norman e Shirley Verrett.

Priscila Olegário foi a primeira negra brasileira a cantar o papel de Aida, famosa ópera de Verdi, no Theatro Municipal de São Paulo

Priscila Olegário foi a primeira negra brasileira a cantar o papel de Aida, famosa ópera de Verdi, no Theatro Municipal de São Paulo. Crédito: Divulgação

Outra pergunta que pintou ao ver sua efervescente paixão pela música: Existe algum concerto que lhe marcou, um momento que emocionou a você ao público?

O dia que cantei no Teatro di San Carlo, em Nápoles, foi chocante, no bom sentido, porque é um local histórico, muito simbólico para a lírica internacional e muito grande. Um teatro de quase 4 mil pessoas, palco enorme, uma coisa estrondosa. Todos os grandes passaram por lá. Fiquei emocionada e chorei. Entre as participações especiais destaco  Davi Marcondes, barítono, que tive a oportunidade de dividir palco no Municipal. Ele fez o meu pai em Aida. É muito simbólico dividir o palco profissionalmente com alguém que me inspirou. Foi marcante, pois na época que comecei meus estudos, ouvia muito ele cantar, era muito especial ver um cantor negro solando divinamente.

Como tornar a música erudita mais popular no Brasil? É importante focar na questão da educação e na formação de público?

Um exemplo é o que fizemos aqui no Sesc Glória, que se chama "Concertos Didáticos". É um concerto curto, com músicas mais conhecidas e, entre as músicas, o maestro ou alguém vai explicando o que é, como foi escrito, de onde vem. Isso é certeza de sucesso, funciona. Acho que isso pode popularizar a música erudita no Brasil. 

NATAL DE TODOS OS SONS 

  • QUANDO: Sábado (16), a partir das 20h, no Sesc Glória. Av. Jerônimo Monteiro, 428, Centro, Vitória
  • O ESPETÁCULO: Orquestra Sinfônica do Espírito Santo e cantora lírica Priscila Olegário se apresentam no “Natal de Todos os Sons”, uma realização do Sistema Fecomércio – Sesc e Senac. O concerto especial de Natal passará por clássicos do repertório temático natalino, como "Silent Night", de F. Grubber; e "Oh, Noite Santa", de A. Adam; além de obras de Mozart, como a abertura da ópera “As Bodas de Fígaro”; e a ópera “Carmen”, de Bizet, interpretadas pela mezzo-soprano internacional
  • INGRESSOS: R$ 30 (inteira). Comerciário: meia solidária (2 quilos de alimentos): R$ 15. À venda no portal lets.events

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