Publicado em 9 de janeiro de 2024 às 19:17
Um belo dia, os compadres gavião e coruja se encontram e começam a conversar. Ele está com fome e ela, preocupada com a segurança dos filhos. O arremate é trágico e, ao final, o narrador entra para anunciar uma espécie de moral da história. >
Parece uma fábula de La Fontaine, mas é Graciliano Ramos —num livro inédito que só vê a luz do dia, agora, porque a obra do autor acaba de entrar em domínio público.>
É possível que, de outro modo, "Os Filhos da Coruja" nunca fosse publicado. Primeiro, porque é um poema. Segundo, porque foi feito sob um pseudônimo, J. Calisto. Cioso de como sua obra era apresentada ao público, o autor deixou instruções explícitas proibindo que textos escritos nessas condições fossem editados após sua morte.>
"Ele achava ruim, se considerava um mau poeta", resume Ricardo Ramos Filho, neto do alagoano, que recebe a notícia dessa edição com "surpresa e tristeza", tachando-a como "uma sacanagem enorme".>
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"Graciliano deixou com meu pai determinações que sempre respeitamos, e agora que entra em domínio público, a primeira coisa que fazem é desrespeitar um desejo dele", afirma. "Sei que Graciliano não queria isso. Ele fazia revisão riscando palavras porque não queria que ninguém visse, queimava a palavra com ponta de cigarro para que não fosse possível ninguém descobrir.">
A questão é que a família não tem mais controle algum sobre isso. Segundo a lei brasileira, os herdeiros de um escritor detêm plenos direitos sobre sua obra apenas nos 70 anos que se seguem à sua morte.>
Como o homem que escreveu "Vidas Secas" morreu em 1953, desde o último dia 1º de janeiro qualquer pessoa tem direito de imprimir e vender a sua própria edição de uma das obras-primas da segunda geração do modernismo brasileiro.>
Ou qualquer outro texto da lavra de Graciliano. Este "Os Filhos da Coruja", de 1923, sai pela primeira vez em livro pela infantojuvenil Baião, braço da editora Todavia, que convidou o pesquisador Thiago Mio Salla para coordenar um projeto de publicações do autor que inclui romances e uma seleção de cartas com mais material inédito.>
"Graciliano é um autor com representatividade tanto literária quanto comercial, e do ponto de vista intelectual, o domínio público abre possibilidades para que a obra seja editada de outras perspectivas, que agreguem novas leituras", afirma o organizador.>
A intenção de seu projeto, diz, é investir em edições críticas cotejando diferentes versões dos textos, oferecer em cada livro um panorama sistêmico da obra completa do autor e selecionar rodapés de autores de ponta como Antonio Candido, outro nome editado pela casa.>
E, sim, publicar material que Graciliano rejeitava, por entender que "o interesse por sua obra é muito grande". "Ele queria manter uma imagem uniforme, mas o que se construiu dele após a morte foi maior do que talvez ele mesmo imaginasse. Estamos falando de um dos maiores autores da literatura brasileira.">
Segundo a editora Stéphanie Roque, da Companhia das Letras, as oportunidades abertas pelo domínio público tornam a obra do alagoano democrática e acessível, algo que agradaria ao próprio autor.>
"Graciliano era um revisor muito rígido da língua, e tinha o mesmo rigor ético com suas personagens tão marcantes socialmente, de fora do eixo sudestino. São livros que vão reviver com novas leituras neste nosso contexto de pensar identidades.">
Por meio do selo Penguin-Companhia, a casa pública a trinca de seus principais romances: "Angústia", "São Bernardo" e "Vidas Secas" —que outras editoras especializadas em trabalhar domínio público, como a Antofágica e o Clube de Literatura Clássica, também têm no prelo.>
A divulgação mais ampla do autor, que era sucesso de crítica mas tinha público restrito em vida, começou com a editora Martins na década de 1960 e se consolidou na Record, que o edita desde 1975 e foi responsável pela comercialização de cerca de 2 milhões de cópias de "Vidas Secas" até aqui.>
Desde então o autor não dá sinais de arrefecer, e Thiago Mio Salla está acostumado a vasculhar fontes primárias para descobrir novos textos do punho do Velho Graça desde os dois doutorados sobre sua obra que concluiu na Universidade de São Paulo.>
Uma das culminações desse trabalho foi "Garranchos", reunião de 80 textos —até então inéditos, alguns sob pseudônimo— da inesgotável produção de imprensa do alagoano. Foi um trabalho feito junto à família do autor, que Mio Salla saúda como "sempre aberta e receptiva", e publicado há 12 anos pela Record.>
A casa onde Graciliano fez morada, aliás, não tem planos de parar de editar seus textos —nem de romper seu contrato com a família Ramos, que vigora até 2029. A decisão de fechar um acordo para além do domínio público, em 2018, foi para honrar a parceria de décadas com os herdeiros, afirma o diretor editorial Cassiano Elek Machado.>
"É natural que agora venham dezenas de outras edições e percamos um pouco a performance com o autor, mas estamos tranquilos com a qualidade e a amplitude do nosso catálogo", afirma ele.>
A Record põe suas fichas, este ano, "tanto em trunfos premium como econômicos", segundo o editor. Primeiro, um box caprichado com os três romances mais consagrados do autor, depois, uma versão de bolso de "Vidas Secas". E enfim, o volume "Prefeito Escritor", com os relatórios de quando, em sua vida pregressa ao sucesso literário, ele foi eleito para gerir a cidade de Palmeira dos Índios.>
A editora continuará pagando direitos autorais à família por mais cinco anos, ao menos, agora com uma diferença relevante. Por iniciativa dos herdeiros, que criaram o Instituto Graciliano Ramos, parte do dinheiro vai para o Innocence Project Brasil, organização que atua em prol de pessoas encarceradas injustamente —assim como aconteceu com o autor durante o Estado Novo, como sabe quem leu as "Memórias do Cárcere". >
O neto que defende seu legado com tanto empenho, Ricardo Ramos Filho, nasceu apenas dez meses após a morte do avô e seguiu seus passos tanto nos posicionamentos firmes quanto na profissão —não só abraçou a literatura como se tornou presidente, recém-reeleito, da União Brasileira de Escritores.>
É alguém que entende do riscado e, nos últimos anos, procurou parlamentares de esquerda no Congresso para tentar mudar a lei que rege o domínio público. Não conseguiu.>
Ele afirma, de pronto e com serenidade, ser "totalmente favorável" a disponibilizar publicamente a obra de Graciliano de graça a quem quiser ler. "Isso poderia ter acontecido até antes. A excrescência dessa lei é poder haver a comercialização da obra sem pagar nenhum direito autoral. E com o agravante de que muitos vão se aproveitar para publicar sem o menor cuidado.">
É algo irônico que "Os Filhos da Coruja", editado na nascente nova fase do autor, gire em torno do medo de ter seus descendentes devorados —um sentimento que, segundo a fortuna crítica da obra, tomava àquela altura o viúvo Graciliano, responsável sozinho por quatro rebentos. Como podemos ver, as leis da natureza são mesmo implacáveis.>
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