Redes Sociais

Cultura tem nome: a história de Carmélia Maria de Souza, a cronista do povo

Homenageada no Centro Cultural Carmélia e na Fundação Carmélia, a escritora desafiou padrões da época e marcou a história de Vitória

Isadora Lima

Reporter / [email protected]

Publicado em 21 de setembro de 2025 às 07:00

Algumas pessoas entram em nossas vidas e, mesmo quando vão embora, permanecem marcadas para sempre na memória. Carmélia Maria de Souza é uma dessas pessoas. O mais impressionante é que não é preciso tê-la conhecido pessoalmente para sentir esse efeito arrebatador. Não à toa, ela dá nome ao Centro Cultural Carmélia e à Fundação Carmélia.

Início da carreira

Nascida em 1937, em Rio Novo do Sul, Carmélia perdeu os pais ainda criança e passou a maior parte da infância morando com parentes em Cachoeiro de Itapemirim. Já adolescente, mudou-se para Vitória e estudou no Colégio Estadual, onde surgiu seu amor pela escrita. O irmão de Carmélia era secretário de Justiça e lhe proporcionou maior acesso à cultura.

“Carmélia gostava de ler, era apaixonada por Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, entre outros autores. Então, eu enxergo na Carmélia um gosto inato, próprio dela, pela literatura e pela cultura de uma forma geral”, conta Kátia Fialho, escritora e pesquisadora da vida e obra de Carmélia.

O primeiro texto de Carmélia foi publicado na revista Comandos, do Colégio Estadual do Espírito Santo. Depois disso, escreveu em diversos veículos como Sete Dias, O Diário, A Tribuna, A Gazeta, O Debate e Jornal da Cidade. Foi servidora pública e trabalhou como secretária na Escola Técnica de Teatro, Dança e Música, a Fafi.

Em suas crônicas, Carmélia falava de tudo um pouco: vida boêmia, amor, fossa e, claro, sobre Vitória e o povo capixaba. Com tom confessional, criticava a hipocrisia e chegou a criar uma sigla para se referir à elite local: TFC, Tradicional Família Capixaba. Fingir não era seu forte: sua escrita era sincera, irônica e cheia de personalidade.

“Uma coisa que eu acho superimportante é que, para mim, as linhas mestras da escrita de Carmélia são o amor e o humor. O humor foi uma arma, uma estratégia para driblar todo um preconceito da época. Ela era uma mulher à frente do seu tempo”, conta Renata Bomfim, autora do livro 'Carmélia Maria de Souza: desesperada e lírica'.

Uma figura transgressora

A escrita de Carmélia foi mais que inovadora: foi revolucionária. O jornalismo capixaba, assim como o brasileiro em geral, era um campo predominantemente masculino. Assim, ter uma mulher com tanto destaque abriu portas para as futuras jornalistas que viriam, como eu.

Não só o trabalho da cronista era importante, mas a sua própria existência e personalidade eram, por si só, uma ruptura na sociedade conservadora da época. Carmélia é considerada uma pessoa LGBTQIAP+ e não performava a feminilidade esperada das mulheres.

“Ela nunca se furtou ao exercício da liberdade que tinha de se vestir, por exemplo, com roupas ditas masculinas. Inclusive, há uma crônica em que ela fala que nada era melhor do que vestir suas calças surradas. Então, Carmélia tinha um way of life muito característico”, lembra Kátia.

Mesmo durante a ditadura militar, Carmélia não se podou perante a repressão. Pelo contrário, chegou a criticar o governo em uma de suas crônicas:

“Há muito cansei de ouvir dizerem a mim que as coisas estão ruins e vão melhorar, pois o Presidente da República e as Gloriosas Forças Armadas estão tomando as providências para botar essa joça no seu devido lugar. [...] Para mim isso acabou de uma vez por todas, não vem que não tem: [...] ‘Independência ou Marte!’ Sim, quero me mandar para Marte, com a maior urgência.”

Amores, brigas e amizade

Mesmo sendo uma personalidade irreverente, Carmélia transitava por diferentes ciclos sociais. Era amiga tanto de pessoas em situação de rua quanto de integrantes da elite. Foi próxima de personalidades como Cariê Lindenberg e Marien Calixte. Também foi uma amante confessa da vida boêmia: seu bar favorito era o Britz Bar, localizado no Centro de Vitória.

Carmélia e Cariê
Carlos Fernando Lindenberg Filho, Cariê, e Carmélia M. de Souza Crédito: Acervo Pessoal | A Gazeta

Mas também existiam conflitos. O mais icônico, sem dúvida, foi a rixa declarada com a cantora Maysa. Em uma de suas crônicas, onde traçou um perfil irônico de si mesma, declarou:

Pessoa que mais detesta: Maysa
Disco preferido: Barquinho (com Maysa)

A teoria é que a origem da desavença venha de um episódio em que Maysa teria se envolvido com um homem por quem Carmélia estava interessada. O amor foi um ponto sensível na vida da escritora — inspiração, mas também sina.

“A Carmélia foi alguém que viveu muitos amores platônicos. Ela amava intensamente e, pelos seus escritos e pelos relatos que ouvi, muitas vezes nutria sentimentos por pessoas que não a correspondiam. Era algo muito dela: sentir profundamente, mesmo quando esse amor não se realizava”, explica Kátia Fialho.

Carmélia Maria Souza por Arquivo pessoal

O fim e os trabalhos póstumos

A cronista morreu aos 36 anos, em fevereiro de 1974, vítima de uma embolia pulmonar. Em um dos seus textos intitulado Testamento, ela pede a realização de um sonho que não pôde realizar em vida:

“Deixo as minhas crônicas (publicadas ou inéditas) para você. Deixo também para você as personagens de um livro que jamais terminarei de escrever. Termine-o por mim, Dindi! Escreva o Vento Sul. Se você fizer isso, eu cobrirei todas as noites o seu sono com a poeira azul das estrelas. E reservarei uma ao lado da minha, para você morar.”

Terceira edição de 'Vento Sul'
Capa da terceira edição de 'Vento Sul' Crédito: Reprodução

Vento Sul foi publicado pela primeira vez em 1976, graças à organização e apresentação de Amylton de Almeida. O livro também teve uma edição especial distribuída nos jornais de A Gazeta, como parte do projeto “Nosso Livro”. A terceira edição foi lançada em 2002, mantendo a introdução de Amylton e suprimindo alguns textos.

“Diga aos que me amaram, que eles me fizeram feliz. O seu amor justificou o meu amor e a ternura dos meus gestos, quando eu esperava por eles, com as mãos estendidas. É assim que os espero, nas esquinas dos astros, em alguma nuvenzinha azul. Afinal, Dindi, não se esqueça de que não quero lágrimas, e sim a sinceridade das rosas sobre mim. Quero que cantem canções de antigas serenatas, a fim de embalar o meu sonho mais bonito. Rosas e violões, Dindi, não se esqueça disto! Será uma forma de dizer que a grande festa apenas começou. Se alguém achar absurdo, diga que eu fui sua muito doida amiga mesmo, Dindi.”

Do nome à memória

Décadas depois de sua morte, Carmélia virou símbolo também na paisagem cultural de Vitória. O Centro Cultural Carmélia foi criado nos anos 1980, em um antigo armazém do Instituto Brasileiro do Café. Pensado para unir o erudito ao popular, chegou a abrigar cinema, TVE e eventos culturais, mas acabou entrando em disputas judiciais entre a União e a prefeitura, e sofreu com o abandono.

Em 2023, a Fundação Carmélia foi criada com o objetivo de modernizar a gestão da TVE e da Rádio Espírito Santo, o projeto também deu fôlego para a retomada das obras de reforma, que agora está sob responsabilidade do Governo Estadual do Espírito Santo. A previsão é que, até 2026, o espaço esteja de volta, funcionando como cine-teatro, com oficinas, contraturmo escolar, shows, festivais e eventos educativos.

“A gente não está falando apenas de obra, mas de levar vida ao espaço. A ideia é transformá-lo em um polo de formação em audiovisual e em cultura popular, valorizando toda a região metropolitana”, explica Igor Pontini, presidente da Fundação Carmélia.

Este vídeo pode te interessar

  • Viu algum erro?
  • Fale com a redação