Campo Grande sentiu os efeitos da pandemia na educação de maneira diferente da periferia de Cariacica
Campo Grande sentiu os efeitos da pandemia na educação de maneira diferente da periferia de Cariacica. Crédito: Ricardo Medeiros

Efeitos da crise colocam em risco avanços da Educação em Cariacica

Em Campo Grande, reabertura do comércio ajuda moradores a se reorganizarem. Enquanto isso, na periferia, crise e fechamento das escolas por causa da pandemia aproximam crianças e jovens de outro problema crônico, a violência

O medo de voltar às estatísticas educacionais do passado tem assombrado moradores de Cariacica durante a pandemia. Com o isolamento social necessário à redução do contágio pela Covid-19, 47 mil alunos da rede municipal estão em ensino remoto. As aulas presenciais só serão retomadas em 2021. Sem escola e sem merenda, muitos dependem de projetos sociais para não cair nas garras de outro desafio crônico do município, a violência.  

Em 1991, o número de crianças entre 11 e 13 anos com o ensino regular ou o fundamental completo em Cariacica era de 49,28%. Em 2010, saltou para 86,14%. O Índice de Desenvolvimento Humano em Educação passou de 0,305 pontos em 1991 para 0,628 em 2010, um aumento de 17,13%. Com a pandemia, no entanto, o tema volta a preocupar, principalmente nas regiões periféricas.

Entre os de menor renda, o interesse pela educação é ligeiramente maior: eleitores que recebem até um salário mínimo representam 29% dos preocupados, enquanto os que recebem mais de dois salários mínimos são 26%.

Em bairros como Flexal I e II,  distantes do centro comercial e administrativo do município, o que se vê é a sobrecarga de projetos comunitários, que trabalham para dar conta das demandas de famílias assoladas pelo desemprego.

Diferentemente de bairros mais próximos do comércio e da administração pública, em Flexal a iniciativa privada é tímida e a maior parte da infraestrutura sociocultural vem de ações populares.

Lia de Oliveira é uma das moradoras de Flexal II que puxam para si a responsabilidade de prover o que vê como ausência do Estado em sua região. Ao lado de companheiras, administra o projeto Minas da Quebrada. “Aqui em Flexal II falta tudo”, diz, sobre o bairro que tem renda per capita de R$ 343,01.

Lia de Oliveira

Ativista de Flexal II, administra o Minas da Quebrada

"Aqui em Flexal II falta tudo"

O projeto nasceu em 2015, como um programa de rádio comunitária produzido e destinado a mulheres. O objetivo era diminuir as distâncias entre a periferia e o centro, além de melhorar as oportunidades e valorizar os talentos locais. “Aqui infelizmente não tem investimento de políticas públicas eficazes. Não temos praça pública, área de lazer, não temos nada. As ações culturais que existem são mais voltadas para os meninos. Por isso, criamos o programa da rádio para as meninas. A comunidade abraçou o projeto”, conta.

O Relatório Ocupação Social de Flexal II, feito pelo Instituto Jones dos Santos Neves em 2017, confirma o relato sobre a prioridade para atividades destinadas aos meninos. Quando perguntados pela pesquisa sobre suas principais formas de lazer, eles responderam futebol (31,1%) e basquete (18,9%). Destacam-se também o skate, o Campo do Apolo, o Projeto Bom de Bola, a Academia Popular e a Rádio das Minas como atividades culturais no bairro.

Ativistas de Flexal II, em Cariacica: Bruno Pereira, Duana Peixoto, Bruna Baldin e Lia de Oliveira. Na foto também aparecem a pequena Mani, filha de Lia, e a cadelinha Cráudia, que adotou o centro comunitário como lar.
Ativistas de Flexal II, em Cariacica: Bruno Pereira, Duana Peixoto, Bruna Baldin e Lia de Oliveira. Na foto também aparecem a pequena Mani, filha de Lia, e a cadelinha Cráudia, que adotou o centro comunitário como lar. Crédito: Maiara Dal Bosco*, Taisa Vargas* e Vinicius Viana*

DA RÁDIO, MINAS PARTIRAM PARA BIBLIOTECA COMUNITÁRIA

Lia acredita que, na periferia, os projetos sociais têm uma característica singular: são oportunidades de aliança contra a histórica indiferença sofrida por muitos moradores. “Começamos a rádio e a comunidade passou a recorrer a nós com várias demandas diferentes. Como a gente não tinha condições de alugar, abri esse espaço aqui na minha casa mesmo para começar a realizar as ações do projeto. Através de editais de incentivo à cultura, conseguimos montar o estúdio da rádio e até nossa biblioteca - a única biblioteca comunitária do bairro. Prestamos todo tipo de ajuda à comunidade”, explica.

A biblioteca comunitária nas dependências do Minas da Quebrada é a única de Flexal II.
A biblioteca comunitária nas dependências do Minas da Quebrada é a única de Flexal II. Crédito: Maiara Dal Bosco, Vinícius Viana e Taisa Vargas

Com a pandemia, o desemprego afetou Flexal II fortemente. Para além do medo do vírus, a comunidade teve receio da fome. Lia traça um retrato amargo da situação atual. “A suspensão das aulas fez com que as crianças não tivessem o lanche, o que desencadeou em falta de comida nos lares. Passei alguns dias em isolamento com minha filha, mas isso significava manter o centro cultural fechado. Pedi a Deus para que me ajudasse a ter forças para reabrir”, relembra.

Emocionada, Lia conta que às vezes falta ao projeto condições para ajudar a comunidade: "Não tenho como ficar dentro de casa esperando a pandemia acabar porque eu não tenho a quem recorrer e as pessoas recorrem a mim".

"PERDÍAMOS MUITOS JOVENS PARA A CRIMINALIDADE"

A ausência do poder público também é sentida por Judismar Morais, de 44 anos, o Mazinho do Instituto Aprender Cultura de Flexal II. Dos 42 anos de história que divide com Flexal, seis são como coordenador do projeto que começou com aulas de skate e futebol. Por meio dos editais do governo do Estado, foi possível organizar uma sede e contratar professores capacitados para lecionar diversos esportes.

“Eu que nasci e fui criado aqui, acabei vendo muita coisa desagradável e perdi muitos amigos também. Cheguei em uma conclusão de que poderia fazer alguma coisa. Nós perdíamos muitos jovens para o mundo da criminalidade. Eu via a necessidade dos jovens que queriam se interessar por alguma coisa”, conta Mazinho.

Lia e Mazinho são igualmente apaixonados por Flexal. Eles continuam em busca de patrocínio para os projetos sociais e afirmam que, apesar da pandemia ter limitado a quantidade de alunos presentes e o ritmo de doações ter diminuído, a ação continua forte.

No Instituto Aprender Cultura, atualmente funcionam aulas de futebol, áudio e vídeo, skate, pedagogia, teatro e rima. No Minas da Quebrada, há aulas de rádio, marketing digital e decoração de festa infantil. O local também virou um ponto de apoio para moradores que não conseguiam baixar o aplicativo para receber o auxílio emergencial do governo federal na época das inscrições.

Instituto Aprender Cultura prepara kits de higiene para distribuir a moradores de Cariacica
A TV Gazeta mostrou, em junho, que Instituto Aprender Cultura preparou kits de higiene para distribuir a moradores de Cariacica. Crédito: Reprodução/TV Gazeta

Sobre as preocupações dos moradores de Flexal, a prefeitura afirmou que está adotando ferramentas para a manutenção da conexão entre estudantes e ensino durante a suspensão das aulas presenciais. Os estudantes que não têm acesso à internet recebem as atividades escolares impressas em horários marcados para que não haja aglomeração.

Em nota, a Secretaria Municipal de Educação (Seme) reforça que aprovou o calendário 2020/2021 considerando que há uma continuidade do currículo escolar e que aqueles conteúdos que não foram trabalhados neste ano serão aprofundados no ano seguinte.

A prefeitura informa ainda que, desde março, quando foram suspensas as aulas, entregou de 106.401 kits merenda para todos os alunos do município. O gasto total com a compra foi de cerca de R$ 3,4 milhões até o momento.

JARDIM AMÉRICA E CAMPO GRANDE: UM OUTRO RETRATO

A cerca de oito quilômetros dali, uma única escola municipal funciona no bairro Jardim América, a EMEF Professor Cerqueira Lima, atendendo o ensino médio durante o dia e o de Jovens Adultos (EJA) à noite. A realidade é outra, como também a renda per capita, R$ 1.052,12.

Boa parte dos moradores ouvidos pela reportagem opta por colocar os filhos em uma das seis escolas particulares da região. O cenário é parecido em Campo Grande, bairro com renda per capita de R$ 1.307,42, onde funcionam 16 escolas particulares e três públicas.

Um morador de Jardim América que preferiu não se identificar conta que, nos finais de semana, é comum ver grupos jogando futebol e até fazendo churrascos nas dependências de sua vizinha, a Escola Estadual EFM Doutor Afonso Schwab. De instituição escolar, ela só preserva o nome: está fechada desde 2016. 

Ele, que vive em Jardim América há 40 anos, conta que frequentou o colégio entre 1985 e 1989. Hoje, a área está cercada por um tapume com as cores da bandeira do Estado, que só deixa ver o matagal e estrutura envelhecida da escola em meio a um terreno consideravelmente grande que tem até quadra poliesportiva.

Segundo o morador, aos finais de semana, quando a vigilância privada contratada pelo Estado não atua, usuários de drogas entram no terreno da escola. “Quando os vigilantes chegam na segunda-feira precisam recolher as porcarias deles”, relata.

EEEFM Dr. Afonso Schwab, em Jardim América, retrata o abandono relatado pelos moradores do bairro

Tapume com as cores do ES é frequentemente violado por grupos que invadem terreno de escola desocupada em Jardim América
Tapume com as cores do ES é frequentemente violado por grupos que invadem terreno de escola desocupada em Jardim América. Maiara Dal Bosco*, Taisa Vargas* e Vinicius Viana*
Quadra poliesportiva de escola desativada em Jardim América atrai grupos para jogar futebol e basquete.
Quadra poliesportiva nas dependências atrai grupos para jogar futebol e basquete. Também é relatado a presença de usuários de droga aos fins de semana, quando não tem vigilância. Maiara Dal Bosco*, Taisa Vargas* e Vinicius Viana*
Moradores relatam que o matagal, os vazamentos d'água e o lixo deixado no terreno da escola causou um surto de dengue na vizinhança.
Moradores relatam que o matagal, os vazamentos d'água e o lixo deixado no terreno da escola casaram um surto de dengue na vizinhança. Maiara Dal Bosco*, Taisa Vargas* e Vinicius Viana*
Escola Estadual abandonada pela administração em Jardim América, Cariacica, desde 2015
Escola foi desativada pela administração e desde 2015 não recebe alunos. Taisa Vargas e Vinícius Viana
Escola foi desativada pela administração e desde 2015 não recebe alunos.
Escola foi desativada pela administração e desde 2015 não recebe alunos.
Escola foi desativada pela administração e desde 2015 não recebe alunos.
Escola foi desativada pela administração e desde 2015 não recebe alunos.

Em nota, a Secretaria de Estado da Educação (Sedu) informou que a escola foi fechada por questões estruturais e que, na época, os alunos matriculados passaram a ser atendidos em outra escola da região. A secretaria ressalta que o prédio conta com monitoramento e limpeza periódica. Também de acordo com a nota, a destinação do espaço ainda está sendo estudada.

ENQUANTO ISSO, NAS INTENÇÕES DE VOTO…

De acordo com a pesquisa Ibope/A Gazeta, de outubro de 2020, a eleição para Prefeitura de Cariacica é liderada pela dupla “Não Sabe” e “Não Respondeu”. A pesquisa aponta que 14% dos cidadãos são indecisos e outros 12% declaram intenções em voto Branco e Nulo. Os eleitores menos escolarizados parecem ser os mais desanimados com o pleito: 61% dos indecisos têm o ensino fundamental completo, 58% o ensino médio e 41% o ensino superior.

Raimunda Pereira, moradora e comerciante na avenida principal de Jardim América há 45 anos, se volta à fé para lidar com a frustração política. “Ainda estou indecisa se vou votar. Quero que os novos representantes pensem principalmente na educação pras crianças. Mas a promessa dos homens é falha, como já se mostrou inúmeras vezes”, diz.

Mapa de Jardim América ostenta o orgulho de Dona Raimunda por seu bairro
O mapa de Jardim América pendurado na parede ostenta o orgulho de Dona Raimunda por seu bairro. Crédito: Maiara Dal Bosco, Taisa Vargas e Vinicius Viana

* Maiara Dal Bosco, Taisa Vargas e Vinícius Viana são alunos do 23º Curso de Residência em Jornalismo da Rede Gazeta e foram supervisionados pela jornalista Ana Laura Nahas.

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