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Publicado em 30 de novembro de 2021 às 19:42
Antes mesmo de concluir a 2ª série do ensino médio em uma escola particular de Vitória, a estudante Mariana Chagas Barbosa Rezende, de 17 anos, resolveu testar seus conhecimentos e fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2021 como treineira. Mais do que descobrir suas habilidades nos conteúdos apresentados, a estudante do Espírito Santo constatou que cinco questões da prova verde - aplicada a candidatos com deficiência - foram diferentes daquelas relacionadas nos cadernos para os demais concorrentes. >
Chama a atenção o fato de as questões aplicadas para os candidatos com deficiência terem relação com pautas sociais que não estavam na prova geral, como feminismo, machismo e racismo, contrariando posicionamento do governo federal. Em declaração na semana passada, Jair Bolsonaro disse que, se pudesse interferir, a prova vista no domingo (21), teria mais questões "objetivas" e também sugeriu que gostaria que o teste tivesse perguntas sobre a ditadura militar. >
No início de novembro, funcionários do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão vinculado ao Ministério da Educação (MEC) e responsável pelo Enem, pediram demissão devido a tentativas de interferência política na elaboração da prova. >
Lúcio Manga, um dos professores de Mariana, até suspeita que a diferença na prova possa estar relacionada a essa denúncia feita pelos ex-servidores, isto é, questões originais podem ter sido trocadas nos demais cadernos, mas permaneceram na prova dos candidatos com deficiência. "É apenas uma suposição, mas considerando que o governo insiste na questão ideológica, de a prova ter a 'cara do governo', não acho improvável", opina. >
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O episódio envolvendo a estudante Mariana Rezende está relacionado ao primeiro dia de provas, em 21 de novembro, quando foram aplicadas a Redação e questões de linguagens e ciências humanas. A situação foi reportada no dia seguinte ao Inep, com a aluna solicitando uma análise urgente sobre os motivos para a diferença. Até esta terça-feira (30), entretanto, ela ainda não tinha recebido resposta. >
Surda oralizada, Mariana tem o português como primeira língua e não precisa da tradução da prova em Língua Brasileira de Sinais (Libras) para fazê-la. No entanto, ela conta, precisou pedir atendimento especializado na aplicação do Enem, pois faz leitura labial para entender as instruções e usa aparelho auditivo.>
"Por causa disso, eu sempre fico numa sala só para deficientes auditivos (geralmente sozinha). Nos outros vestibulares que eu fiz, o caderno que eu recebi era o mesmo que o resto dos estudantes. Porém, no Enem (primeira vez que eu fiz, e como treineira) eu recebi a prova de 'libras'. Isso porque quem pede a tradução da prova em libras recebe um arquivo com a videoprova e a prova física em português. No meu caso, recebi apenas a prova física que, para deficientes auditivos, é um caderno diferente (independentemente de ter pedido a tradução ou não)", lembra a estudante.>
Interessada em saber sobre seu desempenho na prova, no dia seguinte Mariana procurou um gabarito extraoficial para o caderno verde na internet, mas só encontrou uma correção comentada com as questões escaneadas. >
"Fui corrigindo questão por questão. Estranhei porque logo a questão 6 já estava diferente, mas relevei e continuei olhando a correção. Começaram a aparecer várias questões que eu não tinha feito. Chegando em casa - ela estava na escola - conferi com o caderno em mãos. De fato, cinco questões estavam diferentes. Eu fiquei sem saber como reagir. Sem saber se era coincidência, erro ou normal mesmo. Aí decidi ligar para o Inep no número que eles disponibilizam. A atendente disse que poderia haver a mudança de questões de caderno para caderno. Em seguida, eu mandei um e-mail pelo site do governo direcionado ao Inep relatando a situação e pedindo a análise dos cadernos e alguma resposta. Até hoje não me responderam", pontua. >
Mariana conversou com a família e depois relatou o caso para professores, entre os quais Lúcio Manga, de Redação. Após análise, ele considerou que as questões apresentadas no caderno de sua aluna e dos demais candidatos com deficiência eram de resolução mais complexa e, portanto, com nível de dificuldade maior. >
Para Manga, não deveria haver diferença e, mesmo que questões diferentes estivessem previstas no edital do Enem, deveriam testar as mesmas habilidades de todos os alunos, o que não foi o caso deste exame. Aliás, segundo o professor, a edição de 2021 foi a primeira vez em que se fez distinção de prova de candidatos com e sem deficiência. >
As provas do Enem têm cadernos com cores diferentes (verde, rosa, amarelo, branco e azul), para evitar colas e outras fraudes, e cada qual tem questões apresentadas em uma ordem. No entanto, todas as perguntas são iguais. A exceção, neste ano, foi para os alunos com deficiência.>
Em nota, o Inep diz que utiliza a Teoria de Resposta ao Item (TRI) para elaboração das provas e cálculo das proficiências dos participantes do Enem. Diferentemente de uma prova comum, a nota do Enem em cada área não representa simplesmente a proporção de questões que o estudante acertou na prova. Em cada uma das quatro áreas avaliadas, a média obtida depende, além do número de questões respondidas corretamente, também da dificuldade das questões que se erra e se acerta, bem como da consistência das respostas.>
"Alguns itens utilizados para elaboração das provas regulares podem não ser adequados para o público com deficiência. As questões podem ter, por exemplo, algum tipo de imagem ou suporte que impossibilita a descrição para o participante, por ficar muito extensa ou até por apresentar a resposta correta do item. Também pode ocorrer de questões da videoprova em Libras não estarem adequadas para o público surdo ou com deficiência auditiva. Nesses casos, os itens podem ser substituídos para a prova adaptada. O objetivo é proporcionar o atendimento especializado com garantia de isonomia entre todos os participantes", justifica o Inep.>
Ainda em nota, o órgão acrescenta: "A TRI permite a troca de itens sem que as provas percam a comparabilidade entre si, pois as questões são substituídas por outras com o mesmo grau de dificuldade. Além disso, o gabarito não é alterado, no intuito de facilitar a divulgação do arquivo final com as respostas corretas de cada item.">
Na avaliação do professor Manga, contudo, a justificativa do Inep não corresponde ao que foi observado na prova. "Ele poderia se defender, se fossem questões para testar a mesma habilidade, mas são habilidades diferentes. Nâo levam para o mesmo raciocínio e teriam que levar.">
Para exemplificar, Manga cita a apresentação de uma charge e de uma tirinha, que são elementos diferentes, mas que no enunciado cobram do candidato a mesma resposta - identificar a ironia - ou seja, ambos exigem habilidade igual. Outra situação é apresentar elementos diferentes e, em um, pedir para apontar a ironia e, no outro, o "eu lírico". Foi essa distinção, reforça o professor, o problema identificado na prova dos candidatos com deficiência. >
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