Publicado em 19 de novembro de 2021 às 09:13
O desejo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de deixar o Enem com "a cara do governo" incluiu um pedido, feito ao ministro da Educação, Milton Ribeiro, para que houve questões que tratassem o Golpe Militar de 1964 como uma revolução.>
Às vésperas do exame, o governo passa por uma crise que envolve denúncias de interferência em conteúdo e assédio moral de servidores.>
O pedido de Bolsonaro teria ocorrido no primeiro semestre, segundo relatos de integrantes do governo ao jornal Folha de São Paulo.>
Ribeiro chegou a comentar a fala com equipes do MEC (Ministério da Educação) e do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), mas não levou o pedido adiante de modo prático, uma vez que os itens passam por longo processo de elaboração.>
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Capitão reformado, Bolsonaro é defensor da ditadura militar (1964-1985), elogia torturadores e tem histórico de criticar o Enem por uma suposta abordagem de esquerda.>
Após denúncias de interferência na prova por parte dos servidores, ele disse nesta semana que o exame começava a ficar com a "cara do governo" e voltou a criticar a prova.>
A visão de Bolsonaro contaria os fatos e a historiografia, que apontam o movimento de 1964 como um golpe militar ou civil-militar, na visão de alguns historiadores.>
Desde 2019, primeiro ano do atual governo, nenhuma questão sobre o a ditadura caiu no Enem —de modo inédito desde que o exame é aplicado. Questionados, MEC, Inep e Palácio do Planalto não responderam.>
Por causa da pressão por uma prova com a "cara do governo", servidores envolvidos com o Enem classificam o clima atual como desesperador: há temor com relação a possíveis perseguições e punições caso o exame desagrade Bolsonaro.>
No último Enem, por exemplo, o presidente criticou uma questão que falava da diferença salarial entre os jogadores Neymar e Marta. Para ele, o tema seria ideológico.>
Segundo servidores ouvidos pela reportagem, o presidente do Inep, Danilo Dupas Ribeiro, e o ministro não teriam tido acesso à prova durante a elaboração e nem à versão final. Também não teriam determinado exclusão de itens específicos, apesar da pressão pública e velada para enquadrar o exame e evitar questões consideradas de esquerda.>
A Frente Parlamentar Mista de Educação tem cobrado o MEC e vai realizar, com entidades estudantis (Ubes e UNE), uma blitz para acompanhar a aplicação do Enem.>
"A preocupação maior é com desmonte profundo que o governo busca no Inep e que fica claro na prova do Enem", disse o deputado Professor Israel Batista (PV-DF), presidente da frente.>
Desde o início deste governo há pressão para que a prova elimine temas que o presidente e apoiadores conservadores entendem como inadequados —por exemplo, ditadura, questões de gênero e até racismo.>
A pressão ganhou proporções inéditas na gestão de Dupas Ribeiro à frente do Inep e de Milton Ribeiro no MEC. Ambos reforçaram recados e pressões: questões entendidas como subjetivas teriam de ser suprimidas.>
Segundo relatos colhidos pela reportagem, as equipes envolvidas na elaboração da prova buscaram equilíbrio entre essa pressão, o atendimento à matriz de conteúdos do Enem e a coerência estatística da prova.>
No meio do ano, uma nota técnica foi elaborada pela área responsável pelo Enem para determinar que a prova respeite essa matriz. Isso foi interpretado como um respaldo aos técnicos na escolha das questões técnica e pedagogicamente melhores.>
Os itens do Enem são produzidos por professores por meio de editais públicos, e passam por longo processo de produção e calibragem de dificuldades. Depois, integram o Banco Nacional de Itens.>
Técnicos do Inep afirmam que seria impossível, inclusive, atender ao pedido de Bolsonaro sobre contemplar a visão de que o golpe foi uma revolução também por causa desse processo —além de ela não ter amparo histórico.>
Como o modelo de elaboração do Enem prevê calibragem das perguntas por nível de dificuldade, entre outros parâmetros, a versão final da prova depende da composição do conjunto.>
Um fato estrutural relacionado a isso impede o atendimento do plano integral do governo: a escassez de itens prontos impede muitas trocas de questões. Não há produção e pré-testes de novos itens desde 2019.>
Denúncias, reveladas pelo programa Fantástico, da TV Globo, indicam que ao menos 20 itens foram suprimidos da versão inicial.>
Segundo relatos de quem teve acesso ao material, várias questões retiradas na primeira leitura tiveram de voltar para a prova principal para garantir a robustez da avaliação. Outros foram integrados à outra prova que será aplicada para pessoas privados de liberdade.>
O Enem 2021 começa no próximo domingo (21). No dia 8 de novembro, o Inep, que organiza o exame, passou por uma debandada: 37 servidores entregaram cargos de chefia citando "fragilidade técnica e administrativa da atual gestão".>
O MEC minimiza a movimentação e diz que os pedidos de demissão têm relação com mudanças em pagamentos de gratificações, o que é negado pela equipe.>
Ao menos outros 54 servidores assinaram ofício de apoio aos demissionários e cobrando o MEC.>
Em 2019, o Inep criou uma comissão que censurou questões do Enem. Esse grupo foi responsável por vetar questões sobre ditadura, por exemplo.>
Em junho deste ano, a Folha revelou que uma portaria do Inep estabelecia uma espécie de "tribunal ideológico", com a criação de uma nova instância permanente de análise dos itens das avaliações da educação básica.>
O documento falava em não permitir "questões subjetivas" e atenção a "valores morais" e ia contra posicionamento técnico do próprio Inep.>
O MPF (Ministério Público Federal), ao comprovar as informações da reportagem, já recomendou que o governo Bolsonaro se abstenha de criar esse filtro ideológico.>
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão considerou que o ato pode representar ataque à liberdade de expressão e ao pluralismo de ideias.>
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