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Como a Covid afeta o cérebro e provoca até transtornos psiquiátricos

Como a Covid afeta o cérebro e provoca até transtornos psiquiátricos

Especialistas explicam que o coronavírus tem provocado alterações no sistema nervoso, interferindo no bem-estar do indivíduo. A discussão do tema está ligada aos sintomas persistentes da chamada Covid longa

Publicado em 26 de março de 2022 às 20:20

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Transtornos e déficits pós-Covid
Transtornos e déficits pós-Covid. (Pixabay)

Mesmo depois de curadas da Covid-19, sintomas ainda permanecem atormentando as pessoas. Há relatos de dores de cabeça e insônia, alteração no quadro de ansiedade, perda de memória e sintomas de depressão após a doença. Na avaliação de médicos ouvidos por A Gazeta, transtornos psiquiátricos e déficits cognitivos estão entre as consequências da infecção pelo coronavírus. Os especialistas explicam que a doença tem provocado alterações no sistema nervoso, interferindo no bem-estar do indivíduo.

A discussão do tema está ligada ao que é chamado de "Covid longa", quando um paciente curado segue apresentando sintomas da enfermidade meses após a cura. O quadro de sintomas varia de cansaço ou fadiga até a piora em uma depressão já existente.

Em um estudo feito com 425 pacientes que se recuperaram das formas moderada e grave da Covid, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) observaram alta prevalência de déficits e transtornos. O levantamento foi feito entre seis e nove meses após a cura: 51% dos pacientes relataram ter percebido algum declínio na memória. O transtorno de ansiedade generalizada foi diagnosticado em 15,5% dos entrevistados. Já o diagnóstico de depressão foi feito em 8% dos pacientes.

Sintomas Pós-Covid | Pesquisa da USP

- 51,1% dos pacientes relataram ter percebido declínio da memória

-  13,6% desenvolveram transtorno de estresse pós-traumático

- 15,5% foram diagnosticados com transtorno de ansiedade generalizada - em 8,14% deles o problema surgiu após a doença

- 8% dos pacientes receberam o diagnóstico de depressão - em 2,5% somente após o quadro de Covid

O estudo foi feito com 425 pacientes que se recuperaram das formas moderada e grave da Covid-19. Elaborado por pesquisadores da Universidade de São Paulo, com avaliações feitas no Hospital das Clínicas entre seis e nove meses após a alta hospitalar.

Para o médico psiquiatra Luan Pogian, a conclusão do estudo é algo que tem sido entendido como tendência. Apesar de o estudo ter sido feito com 425 pessoas, os resultados indicam que os transtornos psiquiátricos e déficits afetam infectados pela Covid sem distinção de classe social ou gravidade do quadro durante a infecção. Não há como definir critérios para o surgimento dos problemas.

"A Covid, sem dúvidas, é uma condição de risco para adoecimento mental. O desenvolvimento de doenças depende de vários fatores, um deles é a existência de comorbidade ou alguma sequela. Contudo, os estudos durante a pandemia mostram que os transtornos estão sendo desenvolvidos independente de adoecimento prévio", afirma.

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Os que já possuíam algo ficam ainda mais vulneráveis. Mas os que não tinham, podem desenvolver pela primeira vez. Isso reforça a hipótese que o vírus impacta o sistema nervoso central, com o surgimento de danos neurológicos

Luan Pogian
Médico psiquiatra
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O psiquiatra comenta a importância do estudo feito pela USP, que reforça algumas constatações anteriores. De acordo com Luan Pogian, é possível afirmar que o surgimento de transtornos não tem relação com a conduta médica durante a infecção por Covid.

A médica neurologista e professora da Emescam Mariana Lacerda destaca a forma inédita como o quadro tem sido tratado. Com estudos publicados e outros em andamento, ela ressalta como os especialistas aprendem durante a observação.

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Na prática, o que vemos hoje são várias pessoas, mesmo depois de curadas, relatando sintomas persistentes. Isso também é observado em outras infecções, mas parece que na Covid, por ter tido um grande número de infectados, observamos com maior frequência. Notamos muitas queixas psiquiátricas

Mariana Lacerda
Médica neurologista e professora da Emescam
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E complementa:  "Acredito que não sejam casos isolados. Vejo que o número de pacientes aumentou, há mais procura [por atendimento com sintomas pós-Covid]."

Mariana Lacerda aponta que os estudos ainda não são capazes de concluir se a gravidade da infecção por Covid tem relação com o surgimento de transtornos. Não é possível afirmar que uma pessoa que esteve internada em UTI, por exemplo, é mais suscetível ao aparecimento de sintomas pós-Covid. Aqueles que tiveram um quadro com sintomas leves não estão isentos de qualquer um dos sinais depois de curados, avalia a especialista.

A Gazeta perguntou aos médicos se os sintomas pós-Covid podem ser chamados de "sequela". Todos responderam que não há exatidão. A explicação está no tempo de duração daquele sintoma. Cientificamente, sequela é uma manifestação que persiste após uma doença. No entanto, ainda não é possível saber se os sintomas após a Covid terão cura definitiva. Ou, em caso de cura, quanto tempo será suficiente para ter saúde plena.

O médico neurologista Daniel Escobar afirma que os pacientes reclamam principalmente da perda de memória, em diferentes graus. Ele também ressalta que os sintomas pós-Covid têm sido comuns não apenas na neurologia.

O que é Covid longa?

O médico infectologista e professor da Emescam Lauro Ferreira Pinto explica que a classificação depende do tempo de duração dos sintomas. "Tratamos Covid longa quando há mais de três meses de sintomas. A Covid longa é algo semelhante à síndrome da fadiga crônica, quando as pessoas têm dificuldade de executar tarefas simples, problemas com a memória, dificuldade de concentração, além de dor de cabeça.  Pode acontecer em qualquer faixa etária. Os sintomas mais relatados são dificuldades de concentração, fraqueza, insônia, dor de cabeça e perda de memória", detalha.

QUEM SÃO OS PACIENTES MAIS AFETADOS?

 Médicos ouvidos por A Gazeta dizem que os idosos costumam ser os mais afetados pelo surgimento ou agravamento dos transtornos psiquiátricos após a Covid. Não descartam, entretanto, a ocorrência nos jovens. 

"Os sinais pós-Covid são extremamente comuns na prática clínica. Esses sintomas acabam sendo mais importantes em pacientes idosos, uma vez que a infecção pode agravar um quadro já existente. Muito embora pacientes jovens também apresentem essas características", afirma o neurologista Daniel Escobar.

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O ideal é que o paciente busque atendimento logo que identificar algum sintoma que atrapalhe sua rotina, sua atividade diária. É preciso entender a razão desse sintoma

Daniel Escobar
Médico neurologista
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ESTUDO DA USP VAI CONTINUAR

Os 425 pacientes analisados pelo estudo da Universidade de São Paulo (USP) devem continuar sendo acompanhados. Após a constatação do surgimento de transtornos psiquiátricos e déficits cognitivos, especialistas consideram importante entender como será a evolução da saúde dessas pessoas. Apesar de não infectadas, seguem manifestando sintomas da Covid.

O médico psiquiatra Luan Pogian diz que não é possível dimensionar como a Covid longa será tratada durante os próximos anos. Com o aumento no número de infecções como consequência da variante Ômicron, uma mutação mais transmissível, mais pessoas entram em contato com a doença e têm o risco de desenvolver sintomas após curadas.

"Não sabemos o impacto a longo prazo. Pacientes do estudo continuam o acompanhamento em dois ou três anos. Como os casos vão evoluir ainda é uma escuridão, se vão ou não melhorar. Os estudos não são conclusivos quando tratam da gravidade do adoecimento. Esperamos que a vacinação avance e que os pacientes se recuperem", conclui o psiquiatra.

Como citado por médicos, os casos de transtornos e déficits não são exclusividade de pacientes mais velhos, podendo acometer jovens e adultos.

O médico neurologista Daniel Escobar explica que o tratamento de casos como esse depende do quadro de saúde. Mas o especialista afirma que uma vida saudável pode ajudar na recuperação e pode ainda evitar que novos transtornos apareçam. "São hábitos e medidas comportamentais, como exercício físico, bom sono, avaliação médica frequente, alimentação correta, além de estímulos cognitivos", diz. Em casos mais graves, o indivíduo deve procurar atendimento de especialista.

Mariana Larceda reforça a importância do que o médico chamou de "estímulos cognitivos". Para a médica neurologista, quanto maior o consumo de informações e maior o trabalho usando a cabeça, o cérebro cria uma "reserva" maior. "O uso do cérebro pode diminuir o risco de doenças", aponta.

ENCOLHIMENTO DO CÉREBRO

Um estudo feito pela Universidade de Oxford, publicado na revista "Nature", no dia 7 de março, sugere que a Covid-19 pode provocar uma perda maior de matéria cinzenta e mais danos aos tecidos cerebrais do que os que ocorrem naturalmente em pessoas que não foram infectadas com o vírus.

Realizado com pessoas de 51 a 81 anos de idade, o estudo constatou encolhimento e danos aos tecidos principalmente em áreas do cérebro ligadas ao olfato. Algumas dessas áreas, segundo os cientistas, também estão envolvidas em outras funções cerebrais.

O estudo envolveu 785 participantes do UK Biobank, um repositório de dados médicos e outros de meio milhão de pessoas no Reino Unido. Cada um dos participantes fez dois exames cerebrais de diagnóstico por imagem com cerca de três anos de intervalo, mais alguns testes cognitivos básicos.

Entre os dois exames cerebrais, 401 dos participantes testaram positivo para o coronavírus. Todos foram infectados entre março de 2020 e abril de 2021.

Os outros 384 participantes formaram um grupo de controle porque não foram infectados pelo coronavírus e tinham características semelhantes aos pacientes infectados, em quesitos como idade, sexo, histórico médico e status socioeconômico.

Descobertas:

1 - O tamanho geral do cérebro em participantes infectados havia encolhido entre 0,2% e 2%; 
2 - Houve perdas de massa cinzenta nas áreas olfativas e regiões ligadas à memória;
3 - Aqueles que haviam se recuperado recentemente de Covid acharam um pouco mais difícil realizar tarefas mentais.

A autora principal do estudo, Gwenaëlle Douaud, professora do departamento de neurociência clínica da Universidade de Oxford, disse que embora o número de pacientes do estudo que foram hospitalizados, 15, seja pequeno demais para proporcionar dados conclusivos, os resultados sugeriram que a atrofia cerebral que sofreram foi pior do que os pacientes que tiveram sintomas leves.

Os especialista não envolvidos na pesquisa a consideraram valiosa e singular, mas alertaram que as implicações das alterações observadas não são claras e não sugerem necessariamente que as pessoas possam sofrer danos duradouros nem que as alterações afetem profundamente o pensamento, a memória ou outras funções.

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