Publicado em 26 de agosto de 2020 às 14:13
Uma mansão luxuosa cheia de cobras, fontes no formato de corpos femininos que jorram água dos seios e líquidos escorrendo por todos os lados. Esse é o cenário do clipe do último single lançado pela rapper americana Carbi B no começo de agosto, e que é a música mais tocada nos Estados Unidos hoje. >
A abundância de água remete ao nome do single, feito em parceria com Megan Thee Stallion, outra rapper em alta. "WAP", do inglês "Wet-Ass Pussy", algo como "Boceta Molhada Pra Caralho", fala de lubrificação vaginal, descreve cenas explícitas de sexo - e gerou reações entre os que a alçaram a um hino feminista e os que definiram a canção como vulgar e repugnante.>
As rimas afiadas da dupla de fato deixam claro que elas sabem o que querem quando o assunto é sexo. E o que elas querem inclui cavalgar, contrair a vagina durante a penetração, gozar e gritar. Carbi B também avisa que ela não quer uma cobra-liga, uma espécie de pequeno porte, mas uma cobra-real, com alguns metros a mais.>
A descrição virou alvo de polêmicas nas redes e, três dias depois do lançamento da música, Cardi B publicou em seu Twitter que não acreditava em como os conservadores estavam tão furiosos com "WAP".>
>
A postagem era uma reação a comentários como o de DeAnna Loraine, que foi candidata republicana ao Congresso e publicou que as artistas "mandaram todo o gênero feminino de volta para cem anos atrás com a repugnante e vil música 'WAP'".>
O caso de maior repercussão, no entanto, foi com Ben Shapiro. O comentarista político leu a música em seu programa e disse que a composição ficava cada vez mais vulgar. "É disso que se trata o movimento feminista. Não se trata realmente de mulheres serem tratadas como seres humanos independentes e completos", disse Shapiro.>
Depois do episódio, ele arrastou o embate para uma discussão médica: "Minha única preocupação real é que as mulheres envolvidas --que aparentemente precisam de um 'balde e um esfregão' [em referência à música] - recebam os cuidados médicos de que necessitam. O diagnóstico diferencial do médico da minha esposa: vaginose bacteriana, infecção por fungos, tricomoníase", publicou em sua rede social.>
Comparar a lubrificação vaginal a condições médicas não pegou bem e gerou uma nova onda de pessoas saindo em defesa da música e afirmando que, sim, uma vagina molhada é saudável.>
"Se ela está com excesso [de lubrificação vaginal] ela está com um problema? Raramente. A música é pra falar de excitação", afirma Eduardo Zlotnik, ginecologista do Hospital Israelita Albert Einstein. Ele não vê motivo para concluir que se trata de alguém com uma doença na música - trata-se de uma mulher excitada, lubrificada e que quer aproveitar isso, afirma.>
"Mais do que o conceito de saúde ou doença, é o conceito de liberdade sexual que a mulher consegue atingir, de poder cantar isso", avalia sobre a música. "Esse é o lado mais legal.">
Mas a descrição do que é estar molhada em "WAP", na avaliação do ginecologista, também não deixa de ser um retrato exagerado, já que, de maneira geral, as mulheres não têm uma lubrificação excessiva o tempo todo, explica.>
"Sem dúvida algumas podem ouvir essa música e falar 'nossa, por que eu sou assim ou por que eu não sou assim?'. No dia a dia, chegam ao médico, ao consultório, duas coisas: que está úmida demais, e que a paciente confunde com corrimento, ou que está seca demais, que é a imensa maioria.">
Halana Faria, ginecologista do Coletivo Feminista Sexualidade e Saude, diz que o relato da maioria das mulheres em relações heterosexuais ainda é de um sexo desagradável, baseado na penetração e no desejo masculino --e pouco preocupado com a "Wet-Ass Pussy".>
"A história da saúde de pessoas com vagina é a história da alienação, é a história de falta de acesso ao próprio corpo, a história de necessitar sempre de um especialista para falar pra você o que está acontecendo com o seu próprio corpo", afirma Faria.>
Além dos pedidos explícitos do que as rappers esperam de seu parceiro, elas mostram de outras formas que estão no poder da relação sexual que descrevem na música. É o caso de quando Cardi B canta que faz um "kegel", se referindo a uma contração vaginal.>
A ginecologista explica que kegel, na verdade, é uma prática relacionada ao pompoarismo e a fisioterapia pélvica, que se resume a "dominar ou treinar a musculatura do assoalho pélvico para que as contrações sejam prazerosas".>
Depois dessa onda de polêmicas, além de ser a música mais ouvida nos Estados Unidos, "WAP" ficou também entre as 50 mais ouvidas do Spotify Brasil nas duas últimas semanas, e é a mais escutada da plataforma no mundo. Na parada americana, a faixa teve a melhor semana de estreia no streaming em todos os tempos.>
Depois de "Invasion of Privacy", disco de 2018 que rendeu um Grammy de melhor álbum de rap e botou Cardi B nos holofotes, a cantora se firmou como a voz feminina mais bem-sucedida do trap. O subgênero festeiro e desbocado do rap, que há alguns anos domina os serviços de streaming, vê se multiplicar o número de mulheres à frente do microfone - a própria Megan Thee Stallion é um exemplo.>
Mas o retrato do sexo a partir do ponto de vista feminino não é novo na música americana. Na verdade, em agosto, completam-se 100 anos da música "Crazy Blues", faixa de Mamie Smith que foi uma revolução para cantoras negras.>
A música, um lamento sobre um amor que deu errado, vendeu dois milhões de cópias e foi uma prova para a indústria fonográfica de que mulheres negras também consumiam esse tipo de música.>
No livro "Good Booty: Love and Sex, Black and White, Body and Soul in American Music", a jornalista Ann Powers cita uma onda de cantoras negras de blues --as "embaixatrizes do erotismo"- que, nas décadas seguintes a "Crazy Blues", começaram a falar mais sobre sexo em suas letras.>
Em "Sweet, Rough Man", por exemplo, Gertrude Ma' Rainey canta que o marido vem batendo nela todas as noites durante cinco anos e depois acrescenta: "Dizem que sou louca, mas vou explicar [...] Todos sabem que meu homem é maldoso, mas quando ele começa a fazer amor eu me contorço, me viro e grito [...]".>
No Brasil, há um subgênero inteiro do funk dedicado às letras de sacanagem, o "funk putaria". Nos últimos anos, músicas como "Cai de Boca no Meu Bucetão", de MC Rebecca, e "Grelinho de Diamante", de Heavy Baile com Baby Perigosa, fizeram sucesso, mas a tradição é antiga e passa por MCs consagradas como Tati Quebra Barraco, Valesca Popozuda e MC Carol.>
Os números de "WAP" dão uma proporção mundial a essa abordagem de letras no pop, mas há semelhanças entre o Brasil e os Estados Unidos. No clipe oficial, a música de Cardi e Stallion ganhou uma versão "light" --prática de tirar palavrões e termos mais picantes para deixar a canção mais palatável para um público abrangente.>
No funk, não faltam exemplos disso. "Empurra Empurra", de MC Dricka, que estourou ano passado com o verso "quanto mais eu vou gemendo, o [DJ] Will me fode mais", virou "quanto mais eu vou dançando, o Will me sarra mais" ao ganhar um clipe.>
"Não é só pra conseguir espaço em rádio, playlist e TV, mas também no churrasco em família, para que as pessoas possam ouvir com seus filhos mais novos", diz MC Dricka. "Tive muitos conflitos internos, até hoje a gente recebe muita crítica. Não é todo mundo que aceita a gente cantar [putaria], ainda mais sendo mulher.">
"Podemos entender a reação contra falar da lubrificação vaginal porque, se formos olhar para a nossa história, a sexualidade da mulher do século 19, por exemplo, que é um século muito perto da gente, foi considerada uma coisa impensável", explica Regina Navarro Lins, psicanalista e escritora.>
Essa mentalidade pode ser ilustrada pela fala de um médico londrino da época - "Hoje, felizmente sabemos que essa história de que mulher tem prazer no sexo não passa de uma calúnia vil", conta a especialista. Segundo ela, uma repressão de milhares de anos não se desfaz em algumas décadas - mesmo com o sucesso abrangente de músicas de sexo explícito do ponto vista feminino, com a de Cardi B.>
"Apesar de muita insatisfação, tem gente, e não são poucas pessoas, que se agarram ao já conhecido, aos padrões tradicionais, temendo a mudança. Mas eu acho que é uma questão de tempo.">
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta