Publicado em 8 de junho de 2022 às 17:51
Um ano após a morte de Kathlen Romeu, 24, o Ministério Público do Rio não ofereceu denúncia pelo homicídio da jovem, atingida no tórax por um tiro de fuzil quando visitava a avó no Complexo do Lins, zona norte do Rio. Grávida de quatro meses, ela sonhava em formar uma família e havia deixado a comunidade por medo da violência um mês e meio antes de ser baleada.>
Mãe da designer de interiores, Jacklline Oliveira, 41, considera que a Justiça tem sido lenta em relação à morte da jovem. "Essa morosidade faz com que a minha filha seja assassinada todos os dias. Todo dia para mim é dia 8 de junho", diz ela. "Não perdi só quando enterrei minha filha. Eu perco todos os dias. Eu perco quando vou ao Ministério Público e não tenho uma resposta. Eu estou há 12 meses perdendo.">
Ela afirma que o promotor Alexandre Murilo Graça - responsável pelo caso - teria dito que, em dezembro do ano passado, daria respostas sobre o homicídio, o que não aconteceu.>
Já em abril deste ano, depois que amigos e familiares fizeram um ato em frente ao Ministério Público, o órgão teria afirmado que daria resposta ainda naquele mês, o que também não se concretizou.>
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"A quem interessa essa lentidão? O que falta para resolver o caso da Kathlen? É porque ela era negra e da favela?", questiona Oliveira. "Se fosse uma jovem [de classe média] da zona sul, primeiro que ela nem seria assassinada. Mas, se fosse, os responsáveis já estariam presos.">
Em nota, o promotor diz que aguarda a conclusão do inquérito para se manifestar sobre as provas que foram colhidas. "O oferecimento de denúncia ou pedido de arquivamento se fará com a reunião do inquérito e do procedimento investigatório criminal, onde será analisado se houve confronto e sobre a existência de causa de exclusão da conduta", afirma ele.>
A morte de Kathlen deu origem a duas investigações no Ministério Público do Rio, conduzidas por promotores diferentes. Na primeira apuração, a 2ª Promotoria de Justiça, em conjunto com a Auditoria da Justiça Militar, denunciou cinco agentes por supostamente alterarem a cena do crime: o capitão da PM Jeanderson Corrêa, o 3° sargento Rafael Chaves e os cabos Rodrigo Correia de Frias, Cláudio da Silva Scanfela e Marcos Felipe da Silva Salviano.>
De acordo com a acusação, Frias e Salviano retiraram do local cartuchos de fuzis que teriam sido disparados pelos dois. Para isso, teriam contato com ajuda de Scanfela e Chaves. A denúncia afirma que os quatro teriam acrescentado à cena 12 cartuchos calibre 9 mm deflagrados e um carregador de fuzil 556, com dez munições intactas, para "criar vestígios de suposto confronto com criminosos".>
Scanfela, Salviano, Chaves e Frias foram denunciados sob suspeita de duas fraudes processuais e de dois crimes de falso testemunho. Já o capitão Jeanderson Corrêa foi denunciado sob acusação de fraude processual na forma omissiva --de acordo com a Promotoria, ele se omitiu quando tinha a obrigação de vigiar os agentes, já que era o superior hierárquico na ação. A reportagem não localizou a defesa dos acusados.>
A segunda investigação apura os responsáveis pela morte da jovem e é a que tem sido alvo de críticas. Advogado da família de Kathlen, Rodrigo Mondego diz que o promotor Graça já teria dado a entender que poderia pedir o arquivamento do caso, informação que a mãe da jovem endossa.>
Segundo Jacklline, Graça teria dito que ela poderia recorrer a outras instâncias se o caso fosse arquivado. Graça é o promotor que pediu à Justiça o arquivamento do inquérito que investiga uma operação da Polícia Militar que deixou em 2019 ao menos 13 mortos no morro do Fallet, centro do Rio.À época, moradores denunciaram a prática de tortura e afirmaram que as vítimas foram mortas mesmo depois de terem se rendido.>
Ao pedir o arquivamento, Graça disse que os agentes teriam revidado um ataque de criminosos. "Em que pese o número de mortos, parece-nos pacífico que todos possuíam envolvimento com o tráfico de drogas do local", escreveu ele. A Justiça, porém, rejeitou o pedido argumentando ser necessário aprofundar as investigações.>
Segundo Modengo, o promotor teria indicado que poderia arquivar o caso de Kathlen em razão da dificuldade para determinar qual policial teria dado o tiro que matou a jovem.>
O advogado diz, porém, ter outra avaliação. "A gente entende que, se o tiro partiu de dois policiais para atingir suspeitos de crime numa tentativa de execução sumária, existe um concurso de ações e desígnios entre eles. Consequentemente, os dois deveriam responder independente de qual bala acertou a Kathlen.">
De acordo com o laudo de reprodução da morte feito pela Polícia Civil, o tiro que matou a jovem partiu do Beco da 14, local no Complexo do Lins onde estavam os policiais Frias e Salviano.>
A primeira denúncia da Promotoria usou como base esse laudo para apontar que os agentes efetuaram os disparos que atingiram Kathlen na rua Araújo Leitão, paralela ao Beco da 14.>
"Como se não bastasse o fato de que, por completa falha do Estado, os moradores do chamado Complexo do Lins se verem reféns do tráfico de drogas e vítimas de suas muitas violências, também precisam sobreviver a rotina de ações policiais, muitas vezes desastradas", diz a denúncia.>
Mondego considera que o Estado acaba respaldando a violência ao agir de maneira letárgica diante de casos como os de Kathlen. "Quando um caso desses, que já tem testemunhas e laudo, demora [a ser resolvido], é uma forma de o Estado respaldar a sua violência.">
A mãe da jovem afirma que vai continuar lutando pela memória da filha. "Não vou me calar, não vou me cansar. Vou aonde eu puder ir até o último dia da minha vida", diz ela. "Não por justiça. Ninguém vai fazer justiça por ela. Se o Estado fosse justo, ela estaria aqui do meu lado. É pela memória dela e para outras mães não chorarem o que eu estou chorando.">
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