Publicado em 24 de setembro de 2021 às 07:33
Em live transmitida pelo YouTube e pelo Instagram na noite desta quarta-feira (22), o delegado Carlos Alberto da Cunha, 43, conhecido como Da Cunha, admitiu ter encenado a ação em que ele invade um cativeiro e interrompe um sequestro na favela da Nhocuné, em julho de 2020. >
A simulação foi registrada em vídeo e, depois, distribuída a emissoras de TVs e veiculada nas redes sociais do policial. >
De acordo com o delegado, sua intenção era fazer uma reprodução simulada dos fatos, como prova para o processo. >
Para especialistas ouvidos pela reportagem, porém, essa explicação não faz sentido, porque reproduções simuladas são feitas exclusivamente por peritos, a pedido do delegado, para tirar dúvidas sobre a dinâmica de um crime. Não ocorrem em prisões em flagrante. >
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"Foi uma decisão minha, no momento. A 'cana' [prisão] foi dada, eu que quis novamente registrar a cana. Isso acontece muito em inquérito de homicídios, numa série de inquéritos. Eu queria, o que nós queríamos, é que a população do Brasil entendesse o que é um tribunal do crime", disse o delegado paulista, afastado do cargo em julho deste ano. >
A admissão da farsa desagradou parte dos seguidores do delegado nas redes sociais. Alguns passaram a criticar o policial nas mensagens enviadas ao vivo no chat do Youtube. Nos vídeos distribuídos em seu canal, Da Cunha jamais tinha informado que se tratava de uma simulação. >
"Meeeeeeeeeeu, foi fakeeee, então! Palhaçada com seus seguidores. Como acreditar em você? Lamentável", disse seguidor identificado como Jean Carlos. >
"A Folha tinha razão", disse Welliton Cosme. >
Conforme revelou o jornal Folha de S.Paulo, depoimentos em poder do Ministério Público de São Paulo, entre eles da vítima e policiais civis diretamente ligados a ação, sustentam que o delegado afastado decidiu devolver a vítima ao poder do sequestrador para que a ação fosse filmada, como se tivesse sido Da Cunha o responsável pela prisão. >
"Acreditando que realmente se tratava de prova policial, aceitou e foi deixado pelos policiais novamente dentro da casa com o traficante. [...] Acha que isso foi uma falha dos policiais, pois foi deixado no mesmo local que uma pessoa perigosa [que] poderia ter pego uma faca para lhe ferir", disse a vítima (nome preservado), conforme trecho do depoimento. >
Os vídeos de operações oficiais da Polícia Civil postados por Da Cunha nas redes sociais chamaram a atenção do Ministério Público de São Paulo, que instaurou inquérito civil para apurar se o delegado ganhou dinheiro dessa maneira, o que seria irregular. >
De acordo com a Promotoria, caso confirmada, a monetização desse tipo de conteúdo pode configurar enriquecimento ilícito, porque os policiais não podem, em tese, usar cargos públicos nem empregar bens e materiais da Polícia Civil para benefício próprio, de acordo com a lei de improbidade administrativa. >
Em outras oportunidades, ele negou que tenha monetizado vídeos de operações policiais e disse que só fez isso após ser afastado de suas funções. >
Na conversa com os seguidores durante a live, em resposta a reportagem publicada pela Folha de S.Paulo (na qual ele não quis se manifestar), Da Cunha também admitiu que o cativeiro foi estourado por outro policial, Patrick. Para ele, o mais importante foi o salvamento da vítima, que foi real. >
"Ele está vivo, bem até hoje, graças ao policial Patrick, que foi o primeiro a ver, foi o primeiro que viu a cena, [graças] aos policiais Rogério, Ronald, Denis, a minha equipe toda que estava ali. A gente foi, derrubou e, depois, nós fizemos uma reprodução simulada da prova, nos termos do Código de Processo Penal. Já devem querer encher o saco por causa disso, a defesa já está feita publicamente. Assunto encerrado", afirmou o delegado. >
Na live, Da Cunha fez questão de citar mais de uma vez o delegado Denis Ramos de Carvalho, ex-assistente dele no Cerco, bem como o chefe dos investigadores, Renato Araújo de Lima. Os dois foram ouvidos formalmente e confirmaram algumas fraudes, entre as quais a do cativeiro. >
"Se eu não estou aqui defendendo o Renato e o Denis, o Brasil inteiro vai falar que os dois são dois alcaguetas, dois 'X9', que depois que eu fiquei famoso, ficaram com ciúmes e estão querendo me ferrar. Isso é a maior mentira do mundo. Eles são dois grandes amigos, nunca fizeram nada de errado comigo, nunca me traíram e ainda estão aturando um monte de buchas só porque eu fui perseguido", disse. >
Ao se dizer perseguido, Da Cunha provavelmente se refere ao fato de a Corregedoria ter aberto uma série de procedimentos contra ele, a maioria por suposto uso indevido das redes sociais. Depois que foi afastado, ele pediu licença sem vencimento e filiou-se ao MDB para disputar um cargo eletivo. Diz querer ser governador. >
Durante a live de quarta-feira, embora tenha sido cobrado no chat várias vezes pelos seguidores, o delegado não falou de outras operações cuja veracidade está sendo posta em xeque, como a prisão do chefe do PCC conhecido como "Jagunço do Savoy". >
Policiais afirmaram, em depoimento, que Da Cunha nunca capturou esse criminoso, apesar de ter feito vídeos sobre tal prisão. >
A prisão de Jagunço do Savoy rendeu mais de 30 milhões de visualizações e é apontada pelos colegas como o material que transformou Da Cunha em celebridade. >
A advogada criminalista Roselle Soglio diz que a reprodução simulada é feita para dirimir dúvidas. Quando, por exemplo, o réu diz uma coisa e testemunhas dizem outra. "Isso que foi feito [por Da Cunha] pode ser qualquer coisa, mas não é uma reprodução simulada. Isso não existe no Código de Processo Penal e, aliás, só pode ser feito pelo perito", disse. >
Falando de forma genérica, e não do caso específico, o delegado Ronaldo Sayeg, da divisão antissequestros, disse que, geralmente, as reproduções simuladas são feitas em casos de sequestros com morte ou quando há uma dúvida muito importante sobre a dinâmica do crime. >
"A reprodução simulada dos fatos é feita com os peritos. Por isso é preciso agendar com o Instituto de Criminalística, ver quais testemunhas vão participar, se o investigado pretende participar. A oficial é com os peritos. São eles que elaboram os atos", disse.>
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