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É advogado e presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/ES

Vacina: liberdade individual não deve se sobrepor ao direito coletivo

É o sentido de justiça em si, que exige que o indivíduo seja justo não apenas consigo, mas também com o outro. Colocar em risco evitável outra pessoa é postura egoísta e merecedora de reprimendas

  • Raphael Câmara É advogado e presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/ES
Publicado em 28/03/2021 às 10h00
 GERAL - BRASILIA, COVID-19, VACINAÇÃO DRIVE-THRU CORONAVAC -Profissional de saúde nesta quinta-feira, 18 de março, prepara uma dose da vacina CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan, antes de aplicar em idoso em um drive-thru. 18/03/2021
Profissional de saúde aplica dose da vacina CoronaVac em idoso. Crédito: Mateus Bonomi/ Estadão Conteúdo

A vacina contra a varíola continha pústulas de vacas doentes, o que causava repulsa na população, além da incredulidade sobre a eficácia daquele líquido asqueroso. Tão rápida quanto a repulsa foi a boataria: parte dos brasileiros acreditava que ficaria com feições bovinas após a vacinação. Foram décadas de desconfianças.

Não meses, como na pandemia da Covid-19, mas pelo menos 70 anos entre o início da vacinação obrigatória em crianças e a revolta popular contra a vacinação compulsória. Eram outros tempos. Falamos aqui de 1830 até 1904, aproximadamente.

Pessoas morriam aos montes e, a passos lentos, o debate foi se acirrando entre os negacionistas e os defensores da ciência, a ponto de ser criada a Liga Contra a Vacina Obrigatória. Ora, como os chefes de família permitiriam que suas esposas expusessem os braços ou as coxas para serem vacinadas? E as crianças? Sofreriam com as mutações bovinas?

Até o estado de sítio foi decretado, em novembro de 1904, após dezenas de mortes ocorridas nas manifestações contra a vacinação obrigatória. Aliás, a obrigatoriedade logo foi revogada pelo presidente Rodrigues Alves para atender aos anseios populares. A varíola disparou logo em seguida e o preço foi pago com vidas, como sempre. De lá pra cá, quase nada mudou no campo das ideologias, como estamos vivenciando diariamente.

Embora o Direito, sobretudo no campo da Bioética, tenha evoluído ao ponto de sufragar o princípio da autonomia, garantir que indivíduos capacitados a deliberarem sobre suas escolhas pessoais tenham suas decisões consideradas, também evoluiu quanto ao conceito de Justiça na área de saúde, exigindo que o médico exerça a profissão com imparcialidade, evitando que aspectos sociais, culturais ou religiosos sejam vetores de suas decisões.

De partida, e bem ponderados os conflitos, a obstinação terapêutica não pode conduzir o médico à prática desmedida de condutas – entre elas a vacina; qualquer vacina – sob pena de submeter o paciente a suplício inútil. Por outro lado, é dever do médico aplicar os métodos terapêuticos possíveis e necessários para garantir a sobrevivência do indivíduo, entre eles a vacina; qualquer vacina.

De logo se vê que o foco não é propriamente a vacina, mas a vida humana garantida por essa terapia aplicada no indivíduo e nos indivíduos que serão protegidos indiretamente. É o sentido de Justiça em si, aristotélico mesmo, porque exige que o indivíduo seja justo não apenas consigo, mas faça grassar a percepção virtuosa de justiça para o outro. No plano dos fatos, insubordinar-se à vacinação é injusto, e isso não é pouco quando se fala em ética.

Admitir que uma conduta individual seja capaz de colocar em risco evitável outro indivíduo é, por si só, postura egoísta e merecedora de reprimendas das mais diversas, como proibição de dirigir, viajar, exercer atividade remunerada ou mesmo ingressar em estabelecimentos comerciais acaso não faça prova da vacinação.

Tudo para que os dramas do século XIX não estabeleçam – porque já nos visitam – residência fixa novamente no Brasil.

* Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta

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