Publicado em 23 de junho de 2020 às 08:38
Viúva de dois ícones africanos, o moçambicano Samora Machel e o sul-africano Nelson Mandela, Graça Machel, 74, é hoje uma das vozes mais respeitadas, em seu continente e globalmente, na discussão de temas ligados a pobreza, igualdade de gênero e combate à discriminação racial. >
Para a ativista moçambicana, a revolta internacional com o assassinato do negro americano George Floyd por um policial branco demonstra que a humanidade atingiu um "ponto de não retorno" ao não tolerar mais episódios do tipo.>
"As circunstâncias foram como um fósforo que acionou um fogo latente no íntimo das pessoas, independentemente da sua raça, origem social, étnica ou econômica", afirma, em entrevista por email.>
Graça não quis responder a perguntas sobre o papel da Organização Mundial da Saúde (OMS) no combate ao coronavírus e as críticas à entidade feitas pelo presidente dos EUA, Donald Trump. Também não se pronunciou sobre a polêmica sobre remoções de estátuas de figuras acusadas de serem racistas nem declarou quem prefere que vença a eleição presidencial americana de novembro.>
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Ela também diz que o impacto do coronavírus na África será sentido mais em termos econômicos que de saúde pública.>
Graça participa nesta terça-feira (23) de uma "live" promovida pela United Way Brasil (UWB), filial de uma organização filantrópica criada há 130 anos nos EUA e que hoje tem sedes em mais de 40 países.>
O debate, sobre desigualdades e a pandemia, terá também a participação do apresentador Luciano Huck.>
O evento ocorre das 10h30 às 12h e pode ser acompanhado pelo Facebook (@unitedwaybrasil) ou na página do YouTube da United Way Brasil.>
Em fevereiro de 2020, quando o surto do novo coronavírus estava restrito quase exclusivamente à China, os especialistas soaram o alarme: assim que o vírus chegasse à África, esperava-se uma catástrofe incontrolável, devido aos sistemas precários de saúde.
Até agora, no entanto, os números não fornecem um cenário de catástrofe para o continente africano. Provavelmente, porque os governos locais também reagiram cedo e de forma abrangente. Mesmo que o número real de casos seja maior devido à falta de testagem, já está claro que a evolução da pandemia no continente é menos fatal do que, por exemplo, na Europa.>
Na África, a maior ameaça poderá ser o impacto econômico, mais do que o vírus propriamente dito. É preciso lembrar que para muitos não há qualquer rede de segurança social, e onde há, não chega para aliviar o sofrimento diário a que são expostos particularmente os mais vulneráveis.>
De um universo de 28 milhões de moçambicanos, 46,1% vivem abaixo da linha da pobreza, sendo que o sistema de segurança social alcança pouco menos de 4 milhões de pessoas vulneráveis. Não obstante esta realidade, o fato de muito cedo se terem tomado medidas preventivas, abraçando lições de outros países, deve ter contribuído para os níveis baixos de mortalidade, quiçá de contaminação.>
O vírus apanhou toda a gente de surpresa e despreparada. Numa época com milhares de aviões atravessando continentes, propagou-se como um raio. E não é por acaso que foi o hemisfério norte primeiro. Quem viajava mais, duas, três vezes por semana? Houve pânico.
E a máquina da mídia? As mídias sociais? Tudo ficou ampliado exponencialmente. Os vírus anteriores eram regionalizados. Este tornou-se global numa questão de dias.>
Não só na África, mas ao nível global, o coronavírus trouxe a nu as desigualdades sociais, mas também, e sobretudo, acentuou ainda mais as nossas fragilidades, particularmente os sistemas de saúde e social e a economia de forma geral.>
O mundo pós-Covid-19 não será mais o mesmo, terá que reconfigurar as relações entre países e povos e ganhar uma nova forma, particularmente no que tange às dinâmicas demográficas (migrações, oferta de mão de obra etc.).>
Os avanços tecnológicos, associados com o desenvolvimento das cadeias de distribuição ao nível global, permitem que a vacina chegue o mais rapidamente possível a lugares anteriormente considerados inacessíveis.
As experiências e as capacidades acumuladas das agências humanitárias, no seu papel de assistência de emergência, poderão ser equacionadas para aumentar a capacidade de resposta quanto à disponibilização eficiente da vacina logo que estiver disponível.>
Ao jurar defender a Constituição da República, qualquer presidente se obriga a colocar em primeiro lugar a vida e a segurança de todos os seus cidadãos. Ele obriga-se a mobilizar todos os recursos necessários para evitar que o impacto da pandemia não atinja proporções fora do controle.
O Brasil situa-se em segundo lugar [no número de doenças], depois dos EUA. Só isso já é suficiente para forçar medidas enérgicas e apropriadas para corrigir a situação - trata-se de vidas humanas, não são apenas números. Cada indivíduo infectado pertence a uma família e a uma comunidade. O impacto socioeconômico é enorme.>
A imagem do vídeo e sobretudo a voz de George a dizer em mais de oito minutos "I can't breath!" [não consigo respirar] desencadearam protestos não só nos EUA, mas em centenas de cidades em todos os cantos do mundo. Havia uma revolta silenciosa acumulada ao longo dos anos contra a brutalidade da polícia contra os negros.
Por isso, a resposta não foi só dos negros, mas entre brancos e latinos. Todos os segmentos da sociedade revoltaram-se. As circunstâncias foram como um fósforo que acionou um fogo latente no íntimo das pessoas, independentemente da sua raça, origem social, étnica ou econômica.>
É encorajador que os protestos tenham sido feitos por todos. Trata-se de um sinal de que a humanidade atingiu um ponto de não retorno da luta sistemática, com alvos estratégicos, estruturais e institucionais bem definidos, para que a normalização da discriminação racial seja agora e sempre intolerável.>
Graça Machel, 74 Graduada em filologia da língua alemã pela Universidade de Lisboa e fundadora do Graça Machel Trust, que auxilia mulheres empreendedoras na África; a moçambicana também é membro do grupo The Elders, de líderes globais e presidente do Conselho de Administração da Universidade da Cidade do Cabo. Foi ministra da Educação e da Cultura de Moçambique.>
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