Publicado em 21 de fevereiro de 2021 às 17:04
- Atualizado há 5 anos
Um dia depois dos episódios mais sangrentos dos protestos contra o golpe de Estado dado pelos militares em Mianmar, o Facebook baniu a principal página das Forças Armadas e uma multidão crescente voltou às ruas para exigir a volta da democracia. >
"Em linha com nossas políticas globais, removemos a página da equipe de informações do Tatmadaw [como é conhecido o Exército mianmarense] por violações repetidas de nossos padrões que proíbem o incitamento à violência e os danos coordenados", disse um porta-voz da plataforma, por meio de um comunicado divulgado neste domingo (21).>
Nos últimos anos, o Facebook se envolveu com ativistas de direitos civis e partidos políticos democráticos em Mianmar e se opôs aos militares depois de sofrer críticas internacionais pela missão em conter campanhas e discursos de ódio na plataforma.>
O chefe das Forças Armadas que agora comanda o país, general Min Aung Hlaing, e outros 19 oficiais e organizações já haviam sido banidos pela rede social em 2018. Outras centenas de páginas e contas geridas por militares também foram removidas por "comportamento inautêntico coordenado"-- termo técnico utilizado pela equipe do Facebook para se referir ao uso de múltiplas contas falsas para disseminar conteúdo ou aumentar interações na rede.>
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Pouco antes das eleições parlamentares de novembro, a plataforma, que chegou a ser bloqueada no país após o golpe, também retirou do ar uma rede de 70 contas e páginas falas operadas por militares que publicavam conteúdo favorável ao Exército e contrário à conselheira de Estado, Aung San Suu Kyi, e a seu partido, a Liga Nacional pela Democracia (LND).>
Suu Kyi era, na prática, a líder civil de Mianmar. No golpe de 1º de fevereiro, ela e outras autoridades, como o presidente Win Myint, foram depostos e detidos pelos militares. Posteriormente, a conselheira foi alvo de uma acusação obscura de violação de normas comerciais --ela teria importado ilegalmente seis walkie-talkies. Na semana passada, ela também foi acusada de uma suposta violação dos protocolos de combate à propagação do coronavírus.>
Os protestos que se multiplicaram pelas cidades mianmarenses há mais de duas semanas pedem a libertação de Suu Kyi e de outras centenas de presos políticos após a tomada de poder --ao todo, foram 569 detidos desde 1º de fevereiro, segundo a Associação de Assistência a Prisioneiros Políticos de Mianmar.>
Além disso, os atos ganharam novo fôlego devido às mortes causadas pela repressão policial contra os manifestantes. Neste sábado, subiu para três o número de mortos durante as manifestações.>
Segundo relatos de testemunhas e de médicos dos serviços de emergência, um carpinteiro de 36 anos e um adolescente cuja identidade não foi divulgada morreram em decorrência de ferimentos à bala no peito e na cabeça, respectivamente.>
As duas vítimas juntam-se a Mya Khaing, que teve a morte confirmada nesta sexta (19), dez dias depois de também ter sido baleada na cabeça durante protestos na capital do país, Naypyitaw.>
Dezenas de milhares de pessoas se reuniram em Mandalay, onde ocorreram as mortes deste sábado, em um ato pacífico em memória das vítimas e contra o regime militar.>
"Eles miram nas cabeças de civis desarmados. Eles miraram no nosso futuro", gritou um jovem manifestante à multidão.Em Rangoon, outros milhares exigiram o retorno da democracia. "Nós, jovens, temos nossos sonhos, mas este golpe militar criou muitos obstáculos. É por isso que saímos para a frente dos protestos", disse outro participante dos atos à agência de notícias Reuters.>
Protestos semelhantes também foram registrados em cidades como Myitkyina, Monywa, Bagan, Dawei, Myeik, Myawaddy e Lashio, contemplando todas as regiões de Mianmar. O sábado foi, até agora, o dia mais sangrento desde que começaram os atos, mas a violência da repressão policial não esmoreceu o ânimo dos manifestantes.>
"O número de pessoas vai aumentar, não vamos parar", disse um participante dos protestos em Rangoon.>
Nas redes sociais, há várias fotos e vídeos mostrando membros das forças de seguranças atirando contra manifestantes. Embora não seja possível afirmar o tipo de munição utilizada nos disparos, também há uma série de imagens de cápsulas de projéteis letais encontrados por testemunhas.>
"De canhões de água a balas de borracha, a gás lacrimogêneo, e agora a tropas atirando à queima-roupa contra manifestantes pacíficos. Essa loucura deve acabar agora", disse Tom Andrews, enviado da Organização das Nações Unidas a Mianmar, em uma publicação no Twitter.>
Outras lideranças e autoridades internacionais também condenaram o uso excessivo de força na repressão aos protestos, como o porta-voz do Departamento de Estado americano, Ned Price, e o secretário-geral da ONU, António Guterres.>
Para a junta militar que agora comanda o país, entretanto, os comentários feitos por nações estrangeiras "equivalem a uma interferência flagrante nos assuntos internos de Mianmar", de acordo com um comunicado publicado neste domingo pelo Ministério das Relações Exteriores.>
A nota reitera que a tomada de poder no país ocorreu dentro dos limites da Constituição, e diz que as forças de segurança mianmarenses estão mantendo a segurança pública em conformidade com as leis nacionais e com as práticas internacionais.">
Apesar das manifestações ilegais, incitações à agitação e à violência, as autoridades em questão estão exercendo o máximo de contenção por meio do uso mínimo da força para enfrentar os distúrbios", diz o comunicado.>
A mídia estatal tem reproduzido o posicionamento da junta militar. O jornal Global New Light of Myanmar disse que grevistas sabotaram barcos no porto de Mandalay e atacaram a polícia com paus, facas e catapultas, deixando oito policiais e vários soldados feridos.>
"Alguns dos manifestantes agressivos também ficaram feridos devido às medidas de segurança conduzidas pela força de segurança de acordo com a lei", disse o jornal, sem mencionar nenhum dos três manifestantes mortos.>
Durante um anúncio na emissora MRTV, também ligada aos militares, as autoridades disseram que, ao planejarem outro grande protesto para esta segunda-feira (22), os manifestantes estavam incitando a anarquia e empurrando os jovens por um caminho de confronto "em que eles sofrerão perda de vidas".>
Mianmar tem um violento histórico de reações a protestos. Na revolta de 1988, mais de 3.000 manifestantes foram mortos pelas forças de segurança do país durante atos contra o regime militar --o país viveu sob uma ditadura de 1962 a 2011. >
O Exército vem tentando usar supostas acusações de fraude no pleito como justificativa para a tomada de poder. Os militares também acrescentaram à narrativa o argumento de que a comissão eleitoral do país usou a pandemia de coronavírus como pretexto para impedir a realização de uma campanha justa. Dizem ainda que agiram de acordo com a Constituição e que a maior parte da população apoia sua conduta, acusando manifestantes de incitarem a violência.>
O general Hlaing decretou em 1º de fevereiro um estado de emergência que deve durar um ano. "Colocaremos em operação uma verdadeira democracia multipartidária", declarou o novo regime, acrescentando que o poder será transferido após "a realização de eleições gerais livres e justas". A promessa, apesar de reiterada, é encarada com ceticismo pelos mianmarenses opositores e por observadores internacionais.>
A LND, partido de Suu Kyi que comanda o país desde 2015, obteve 83% dos votos e conquistou 396 dos 476 assentos no Parlamento nas últimas eleições em Mianmar, realizadas em novembro do ano passado. A legenda, entretanto, foi impedida de assumir quando o golpe foi aplicado no dia da posse da nova legislatura. O Partido da União Solidária e Desenvolvimento, apoiado pelos militares, obteve apenas 33 cadeiras. >
CRONOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA DE MIANMAR >
1948: Ex-colônia britânica, Mianmar se torna um país independente >
1962: General Ne Win abole a Constituição de 1947 e instaura um regime militar >
1974: Começa a vigorar a primeira Constituição pós-independência 1>
1988: Repressão violenta a protestos contra o regime militar gera críticas internacionais >
1990: Liga Nacional pela Democracia (LND), de oposição ao regime, vence primeira eleição multipartidária em 30 anos e é impedida de assumir o poder >
1991: Aung San Suu Kyi, da LND, ganha o Nobel da Paz >
1997: EUA e UE impõe sanções contra Mianmar por violações de direitos humanos e desrespeito aos resultados das eleições >
2008: Assembleia aprova nova Constituição >
2011: Thein Sein, general reformado, é eleito presidente e o regime militar é dissolvido >
2015: LND conquista maioria nas duas Casas do Parlamento >
2016: Htin Kyaw é eleito o primeiro presidente civil desde o golpe de 1962 e Suu Kyi assume como Conselheira de Estado, cargo equivalente ao de primeiro-ministro>
2018: Kyaw renuncia e Win Myint assume a Presidência >
2020: Em eleições parlamentares, LND recebe 83% dos votos e derrota partido pró-militar >
2021: Militares alegam fraude no pleito, prendem lideranças da LND, e assumem o poder com novo golpe de Estado>
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