Publicado em 6 de dezembro de 2021 às 08:58
No vídeoclipe de "Masculinidade", nova música lançada recentemente pelo cantor Tiago Iorc, o cantor desfia críticas ao machismo e desabafa sobre o vício em pornografia e os abusos que cometeu, as lágrimas que causou. "Ser homem exige muito mais do que coragem/ Muito mais do que masculinidade/ Ser homem exige escolha", afirma na canção, de mais de seis minutos. >
"Essa música nasceu de um processo muito pessoal, um sentimento íntimo que me trouxe, naturalmente, bastante insegurança. Enquanto escrevia, dividi-o com pessoas próximas e percebi que, ao compartilhar minha história, elas se sentiam mais confortáveis para se abrir também. Isso me incentivou a pôr esse trabalho no mundo", relata o cantor, em nota.>
O videoclipe alia uma câmera bem articulada a uma performance corporal dramática, e marca o retorno do cantor aos holofotes após meses de hiato, contabilizando mais de 1,6 milhões de visualizações em menos de um mês. Assista abaixo:>
Apesar da alta audiência, o lançamento não foi totalmente positivo para o cantor dos sucessos "Coisa Linda" e "Amei Te Ver". Iorc virou motivo de chacota pela postura de "homem consciente" - também conhecido como "desconstruído"- e inspirou memes que zombam não só dele, como de outros famosos que empunham bandeiras contra estereótipos de gênero.>
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Isso porque usar vestidos, saias e pantalonas, pintar as unhas e admitir que já foi abusivo não são as atitudes que melhor demonstram o desejo de lutar contra o machismo, tampouco comprovam o reconhecimento de privilégios masculinos. Pelo menos é o que pensam algumas feministas incomodadas com "Masculinidade".>
Questionado sobre as críticas, Iorc diz que "são muitas opiniões, e todas válidas". "Podemos aprender com todas elas. A minha é apenas mais uma voz nesse debate que já vem acontecendo há tempos.">
"Certamente o Tiago Iorc sofre com a masculinidade. Todos sofremos. Mas a música é um espetáculo do 'eu' e trata a masculinidade apenas como um efeito colateral, como se nela não existisse um algoz", afirma Manuela Xavier, especialista em psicanálise e influenciadora digital. "Mesmo quando ele admite que já foi covarde e abusivo, não vemos uma responsabilização, ou reconhecimento dos benefícios que tirou disso tudo. É como se ele fosse a vítima.">
Para Xavier, a letra mostra ainda que o artista falhou na proposta e reforçou o que diz querer combater. "Em um dos versos, ele fala que teve medo do seu feminino. Mas o que seria esse feminino? Ser sensível e emotivo? Isso é exatamente um estereótipo", diz ela.>
Discussões sobre construção, expressão e identidade de gênero permeiam as ciências humanas há décadas. Mas as gerações Y e Z, que compreendem indivíduos nascidos entre as décadas de 1980 e 2000, têm exercitado isso de novas formas. Isso porque eles dizem preferir as próprias individualidades a caixinhas de "masculino" e "feminino", indo na contramão de conceitos como o de meninos terem de se vestir de azul e meninas, de rosa.>
Um estudo da WGSN, empresa especializada em tendências de comportamento e de consumo, mostra que é cada vez mais comum lojas não atribuírem gênero aos serviços e produtos que oferecem, sejam eles roupas, brinquedos, eletrodomésticos, tratamentos de beleza e outros.>
É um sinal de que a luta contra aos estereótipos de gênero se torna cada vez mais rentável e que há um mercado atento a essas narrativas.>
Professora e especialista em crítica cultural, Júlia dos Anjos Costa afirma que a lógica do capitalismo é transformar tudo em produto, incluindo ideologias e lutas sociais.>
"Não acredito em interesse genuíno de grandes marcas. Tem muita empresa lucrando com 'pink money'", diz Costa --o termo se refere à venda de produtos pensados para o público LGBTQIA+. "A palavra 'empoderamento' está cada vez mais vazia. É como se comprar uma camisa fosse fazer alguém empoderado.">
Ainda assim, a massificação de pautas até então restritas a nichos pode ser benéfica, defende Costa. Nesse sentido, o que Tiago Iorc está fazendo agora com "Masculinidade" não deixaria de ser relevante.>
O escritor João Silvério Trevisan, que neste ano lançou uma nova edição de seu livro "Seis Balas Num Buraco Só - A Crise do Masculino", concorda que a canção de Iorc tem apelo popular. Mas, opina, a sua tentativa de repensar o masculino se mostra "absolutamente insuficiente".>
"A impressão que fica é a de que ele saiu da terapia e quer dar um conselho, quase como uma autoajuda", diz Trevisan. "Mas o videoclipe tem suas complexidades para além do texto. É bem bonito. Muita gente está fazendo o que o Iorc fez, e as maiores abordagens que encontrei vieram de feministas. Isso precisa continuar.">
Para Trevisan, é precipitado afirmar que o músico deseja apenas se autopromover, esvaziar a causa feminista ou se promover sexualmente ao construir uma imagem de bom moço na tela, como sugerem algumas críticas.>
Ainda assim, não é incomum se deparar com o arquétipo do homem progressista galanteador que se camufla sob discursos revolucionários para seduzir mulheres e, muitas vezes, agredi-las de alguma maneira.>
Um dos maiores memes da figura do "esquerdo-macho" -os machistas de esquerda- é o personagem de Emilio Dantas em "Todas as Mulheres do Mundo", série do Globoplay inspirada no filme homônimo de Domingos de Oliveira. Com um discurso libertário, ele seduz dezenas de mulheres e faz juras de amor eterno a cada uma delas.>
Para Manuela Cantuária, colunista de humor da Folha que fez piada com o clipe de Iorc em um texto recente, o cantor representa um novo tipo de esquerdo-macho. "[A letra de 'Masculinidade' tem] um discurso muito bonito, mas a gente precisa começar a olhar para a prática. Às vezes, é melhor ter humildade e assumir que não se está tentando mudar do que se colocar como alguém que entendeu tudo sobre o assunto.">
Cantuária diz ver em músicos como Iorc, Fiuk -participante do Big Brother Brasil deste ano que chegou a fazer aulas de feminismo para não fazer feio no programa e viralizou ao chamar Carla Diaz de "branca privilegiada"- e o britânico Harry Styles, que estampou a capa de uma edição da Vogue de vestido, um contraste a ser analisado com cuidado, sem demonização e valorização excessiva.>
"É legal, válido e importante", diz ela. "Mas é preciso ir além do discurso e do lucro. Queremos agentes realmente transformadores.">
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