Publicado em 29 de setembro de 2025 às 11:12
Poucos cortes de cabelo viveram uma trajetória tão dramática, controversa e resistente quanto o mullet. Além dele, da careca e do "comb-over", truque de quem perde o cabelo no cocuruto e deixa um dos lados bem comprido para pentear por sobre a cabeça, não me lembro de cortes masculinos tão marcantes.>
O mullet, entretanto, é inesquecível, para a desgraça de muitos álbuns de fotos de quem buscava se expressar pelo topete nos anos 1980. Curto na frente, mais curto ainda do lado e longo atrás, foi símbolo do excesso pop dos anos 1980, piada global e, agora, provocam quase um desmaio coletivo em quem levou décadas para superar o look.>
No Festival de Cinema de Veneza, encerrado no começo do mês, sua ressurreição foi inegável. Os lindos, charmosos e muito trendsetters Jacob Elordi e Oscar Isaac desceram de seus barquinhos na ilha do Lido com diferentes versões do mullet, deixando claro que a opção não era fruto de gosto exótico, mas sim do retorno inegável deste esqueleto no armário de quem já estava alerta no século passado.>
Que essa volta tenha acontecido em Veneza parece até poético. Como qualquer festival de cinema em cujo tapete vermelho desfilam as pessoas mais lindas e famosas de uma indústria que trata muito bem os seus lindos e famosos, os festivais são sempre um farol tanto de moda e beleza quanto de cinema.>
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Veneza é um palco para cineastas apresentarem sua arte, mas também para atores se destacarem como ícones fashion. E, neste ano, entre vestidos de alta-costura e smokings desconstruídos, foi um corte de cabelo masculino que deixou a pegada mais marcante.>
O mullet não surgiu como uma piada. Sua origem parece remontar à Grécia antiga, quando guerreiros usavam o cabelo longo atrás para proteger a nuca do sol, mas mantinham a frente e a lateral mais curta para ter visibilidade nos combates.>
Cortes semelhantes aparecem em livros de história entre os hunos, povo antigo da Ásia Central, e em representações de povos nativos americanos, em que o cabelo tinha funções de proteção, intimidação e identidade cultural. O equilíbrio entre praticidade e estilo foi surgindo e desaparecendo ao longo dos séculos, mas nunca sumiu por completo. Muito menos ganhou um nome.>
Nos anos 1970 o mullet moderno chegou aos holofotes quando David Bowie estreou sua versão alienígena andrógino Ziggy Stardust, com um mullet vermelho teatral e impossível de ignorar. Nos Estados Unidos, músicos country o adotaram quase imediatamente, levando a sério o que poderia ter sido uma brincadeira. Billy Ray Cyrus, o pai de Miley, tornou-se o embaixador eterno do corte infame e o transformou em símbolo da rebeldia da classe trabalhadora.>
Mas foi na década seguinte que o mullet viveu sua era de ouro, quando saiu da contracultura e chegou ao mainstream, na cabeça de gente como Prince, Bono e Paul McCartney. No esporte, o tenista Andre Agassi incrementou o corte com descoloramento, para complementar seu look extravagante de roupas coloridíssimas.>
Os jogadores de hóquei, por sua vez, usavam como se fosse um uniforme obrigatório. Na Austrália, onde, aliás, ele nunca saiu de cena, ficou tão ligado à cultura esportiva e aos pubs que ganhou apelido próprio: "bogan cut". O mullet era mais que um cabelo; era um estilo de vida, tinha até slogan: "negócios na frente, festa atrás.">
O dicionário Merriam-Webster registra a origem da palavra como o inglês antigo "molet/mulett", via francês arcaico "mulet" (vermelho), vinda por sua vez do latim "mullus" (um peixe vermelho), derivado do grego "mýllos" (nome de um peixe).>
A moda, no entanto, não gosta de continuidade e sim de novidade. E nos anos 1990 o mullet virou chacota. Quem ainda usava o fazia por falta de noção ou por cafonice. Até o slogan que antes o celebrava virou piada. Em 1994, o duo de rap Beastie Boys consolidou-o como motivo de piada na música "Mullet Head".>
Mas o mullet nunca morreu. Na Austrália, assim como na América Latina, o mullet resistiu, quase como uma forma desafiadora de declarar que o dono daquela cabeça não era uma vítima da moda, mas autor do próprio estilo.>
Aí, pronto, novo século, novo milênio, e nada aconteceu como o previsto. Surgiu o K-pop e com ele voltou o malfadado, com estrelas como G-Dragon e Taemin e seus mullets futuristas, que, como o fenômeno em si, chegou chegando. O rebranding coreano foi crucial para torná-lo cool novamente.>
No fim da década passada, por uma nostalgia somada a uma pitada de ironia, Miley Cyrus assumiu o legado do pai com um mullet mais punk, e Rihanna também passeou pelo visual. Jogadores de beisebol dos EUA ressuscitaram o mullet raiz, exagerado, meio por deboche. A alta-costura veio atrás, com modelos andando com versões propositalmente desalinhadas nas passarelas.>
No começo do ano, enquanto o Brasil todo se unia na torcida por Fernanda Torres como melhor atriz dramática no Globo de Ouro, prêmio que ela levou, talvez a emoção coletiva tenha sido tamanha que ninguém notou o cabelo penteado levemente a la mullet, com as laterais grudadas na cabeça e o resto soltinho, volumoso. Ficou bonito.>
E aí Veneza, agosto de 2025. Logo no começo do festival Paul Mescal, ousado, exibiu um corte totalmente "rugby-boy", parecia mais um projeto arquitetônico que um corte de cabelo. Mas uma andorinha só, você sabe. Era cedo para cravar a volta do mullet. Ela aconteceu com um golpe duplo, na estreia de "Frankenstein", de Guillermo Del Toro, um dos mais esperados deste ano, com Oscar Isaac como o médico maluco e Jacob Elordi como sua criatura.>
E os dois chegaram com seus mini-mullets, adornando os rostos perfeitos e os corpos elegantes. Não tinha mais como negar, nem rezar que fosse tudo ilusão, o mullet estava de volta.>
O novo mullet não é tão rígido quanto já foi, aliás, é o bagunçadinho do corte que parece atrair quem está em busca de um cabelo prático, mas meio sexy, divertido. Fora que pentear a franja para a frente é um movimento muito desejável para quem já está em guerra com as entradas nas laterais superiores da testa.>
O mullet também serve como ferramenta para a atual redefinição da masculinidade, tão atacada ultimamente que o visual menos chamativo possível parecia a melhor opção. Agora, talvez, não mais. Afinal, na moda, assim como na vida, nada se cria, tudo se interpreta.>
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