Publicado em 21 de janeiro de 2025 às 16:00
O início de Misericórdia é banal. Jérémie (Félix Kysyl) retorna para a antiga cidade em que morava, no interior da França, para participar do velório do ex-chefe, dando assistência à viúva e ao filho desamparados. Mas isso é apenas a ponta de um iceberg muito maior e mais complicado.>
O novo filme de Alain Guiraudie, em cartaz nos cinemas brasileiros, não é uma história sobre luto, retornos inesperados e reencontros. É um comentário bem-humorado sobre o comportamento humano, tentando compreender como o desejo pode ser uma interessante ferramenta social.>
Jérémie não está ali naquela pequena cidade apenas tentando se reconectar ou se reencontrar. Ele causa emoções mistas na viúva (Catherine Frot), que não sabe lidar com os sentimentos envolvendo o rapaz; provoca raiva no filho (Jean-Baptiste Durand) do falecido, que também vive sentimentos conflituosos; e mostra relacionamentos curiosos envolvendo um vizinho (Serge Richard) e um abade (Jacques Develay).>
O filme foi bem recebido nos festivais de Cannes, Munique, Toronto e de Nova York, e foi exibido na Mostra de São Paulo no ano passado; também foi escolhido o melhor filme de 2024 pela Cahiers du Cinéma, superando Segredos de um Escândalo e Zona de Interesse. É um longa-metragem complexo - na forma e no conteúdo. Guiraudie brinca com nossos sentidos e faz com que a jornada de Jérémie seja marcada por nuances, caminhos fechados e vias de mão dupla.>
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Os personagens estão sempre transitando entre o desejo e o ódio, a culpa e a realização, a verdade e a mentira. Como já foi dito pela crítica internacional, há traços de Teorema, de Pasolini, com esse protagonista que parece ter o amor e o sexo como formas de comunicação e, mais do que isso, de persuasão. É um filme sobre desejo, seja o de Jérémie ou aquele projetado na figura desse rapaz que é lembrado na cidade de diferentes modos e visões.>
Guiraudie não se contenta com um filme apenas policialesco. Misericórdia é uma mistura de tudo o que o diretor francês nos apresentou até agora em seu cinema: o caos sombrio e sexual de Um Estranho no Lago, a comicidade de Viens Je tEmmène, a bizarrice de Pas de Repos pour les Braves. Está tudo ali, num filme em constante transformação.>
O terço final de Misericórdia, por exemplo, ganha, inesperadamente, ares cômicos mórbidos, mergulhado em uma ironia mordaz, com cenas tão perturbadoras quanto divertidas. A sequência envolvendo Jérémie e o abade, por exemplo, é uma das grandes cenas do ano - estranha, desconfortável, engraçada.>
O diretor não se furta a fazer comentários sociais ao retratar diferentes tipos de hipocrisia, absurdos e relacionamentos fracassados: o homem solitário com medo de se assumir, o outro que usa a violência como substituta ao desejo ou até o padre desejoso, cutucando a ferida de uma igreja com medo de assumir a humanidade de seus representantes.>
Misericórdia, assim, fala sobre desejos e sentimentos conflituosos enquanto coloca o espectador contra a parede - seja na relação complicada que estabelece com o protagonista de objetivos escusos, seja no modo como trata o desejo, ora como forma de controle, ora como um simples sentimento. Um filme completo, que coloca o dedo na ferida e segue na contramão de uma Hollywood cada vez mais conservadora e assustada. >
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