Publicado em 17 de novembro de 2025 às 10:01
João Pimassoni>
Desde os primeiros passos do cinema, a música sempre esteve ali, às vezes como trilha, às vezes como inspiração, e em certos casos, como o próprio enredo. Algumas canções são tão visuais, tão cheias de personagens e atmosferas que parecem já nascer prontas para a tela grande. Outras, o contrário: filmes que encantam tanto que acabam virando versos, melodias e refrãos. >
Essa troca constante entre som e imagem cria um diálogo fascinante entre duas formas de arte que se alimentam mutuamente. A seguir, revisitamos casos em que uma canção deu origem a um filme (ou um filme fez nascer uma música), mostrando como a melodia pode se transformar em narrativa, e o cinema, em partitura emocional.>
Antes mesmo de Julia Roberts encantar o mundo com seu sorriso, Roy Orbison já havia eternizado a imagem da “pretty woman” que cruza a rua e deixa um rastro de fascínio. Lançada em 1964, a canção celebra o encanto imediato e irresistível de uma mulher cuja presença transforma o ambiente, “Pretty woman walking down the street, pretty woman, the kind I’d like to meet” (“Linda mulher andando pela rua, linda mulher, o tipo que eu gostaria de conhecer”). >
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Anos depois, essa aura inspiraria Uma Linda Mulher (1990), dirigido por Garry Marshall, com o icônico casal Julia Roberts e Richard Gere. A história ambientada em Los Angeles mistura mundos opostos: um executivo solitário e uma prostituta que, por acaso, se tornam cúmplices de transformação.>
Mais do que título, a música de Orbison é o coração simbólico do filme, sua trilha e seu tom. A mesma mulher que desperta o encanto na letra é aquela que, no longa, muda o rumo da própria vida e do homem que a encontra.>
Quem nunca ouviu essa história de amor “estranha com gente esquisita”? A canção da Legião Urbana virou um retrato geracional. Eduardo, um adolescente comum, e Mônica, uma universitária culta e independente, vivem um romance improvável que desafia convenções, “quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?”. >
Mais de trinta anos depois, o cinema transformou essa crônica em filme. Eduardo e Mônica (2020) leva à tela o clima de Brasília nos anos 80, suas festas, encontros e contradições. O longa é quase uma tradução literal da letra, mas também um mergulho visual no cotidiano, nas cores e nas emoções da época.>
Se a canção era um conto em verso, o filme é sua expansão: dá corpo, voz e cenário ao amor que nasceu de diferenças e virou símbolo de uma geração, aquele mesmo amor que, como canta Renato Russo, “não tinha medo de nada”.>
Nenhuma música brasileira conta uma história tão cinematográfica quanto Faroeste Caboclo. Em nove minutos, Renato Russo narra a saga de João de Santo Cristo, um anti-herói nordestino que migra para Brasília em busca de justiça e acaba tragado por crime, amor e desigualdade. “Discriminação por causa da sua classe e sua cor” ecoa como denúncia social e poesia bruta, um retrato cru de um Brasil marginalizado. >
A versão para o cinema, dirigida por René Sampaio em 2013, transformou essa epopeia cantada em narrativa visual. As rimas viraram roteiro e os versos ganharam rostos e paisagens. O duelo final, televisionado, traduz literalmente o verso “queria falar pro presidente pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer”, ampliando o tom político e trágico da canção.>
Se a música era denúncia e mito, o filme é seu espelho em movimento, uma balada sobre exclusão, amor e destino.>
Em meio a batidas dançantes e refrãos pegajosos, o grupo sueco ABBA lançou, em 1975, a contagiante “Mamma Mia”, uma confissão de amor e desilusão: “I've been cheated by you since I don’t know when” (“Fui enganada por você desde que me lembro”) e “Just one look and I can hear a bell ring” (“Basta um olhar e eu ouço um sino tocar”). A expressão italiana, entre o desespero e o encanto, virou sinônimo de rendição emocional. >
Décadas depois, o cinema transformou o universo pop do ABBA em musical: Mamma Mia! (2008), dirigido por Phyllida Lloyd. A trama segue Sophie (Amanda Seyfried), prestes a se casar, que convida três possíveis pais para a cerimônia, forçando sua mãe Donna (Meryl Streep) a encarar o passado.>
Mais que trilha sonora, as canções do ABBA são a alma da narrativa. “The Winner Takes It All” (“O vencedor leva tudo”) ecoa as dores e as despedidas do amor, enquanto “Dancing Queen” celebra a liberdade de ser e sentir. É a música transformada em emoção pura, dançada sob o sol grego.>
Em 1970, quando os Beatles se despediam do mundo como banda, Paul McCartney ofereceu um bálsamo: Let It Be. “And when the broken-hearted people living in the world agree, there will be an answer, let it be” (“E quando as pessoas de coração partido do mundo concordarem, haverá uma resposta: deixe estar”). Inspirada em um sonho com sua mãe, a canção se tornou um hino de aceitação e esperança. >
Décadas depois, Julie Taymor transformou essa e outras músicas dos Beatles em Across the Universe (2007), um filme que mistura amor, guerra e contracultura. Entre protestos e paixões, versos como “All you need is love” (“Tudo que você precisa é amor”) ganham força política e visual.>
O que era consolo virou resistência. A canção que pedia serenidade se transformou, no cinema, em um manifesto de fé na humanidade, mesmo em meio ao caos.>
No pós-guerra francês, Georges Franju chocou o público com Les Yeux Sans Visage (1960): um terror poético sobre um cirurgião que, obcecado em restaurar o rosto desfigurado da filha, passa a sequestrar jovens para transplantar suas faces. O resultado é uma fábula sombria sobre identidade e perda, em que o olhar da jovem, “sem rosto”, se torna espelho da própria culpa do pai. >
Duas décadas depois, Billy Idol recuperou o título e a inquietação em “Eyes Without a Face” (1983). A letra, melancólica e sombria, diz: “You’ve got no human grace, your eyes without a face” (“Você não tem nenhuma graça humana, seus olhos não têm rosto”). O refrão repete o título em francês, ecoando o fantasma do filme original.>
A conexão é sutil, mas poderosa: tanto a música quanto o filme falam sobre a perda da identidade e o vazio existencial, o horror de estar vivo, mas sem alma.>
No auge da cultura das estradas americanas, C.W. McCall lançou “Convoy” (1975), um sucesso que ecoava o espírito rebelde dos caminhoneiros que se comunicavam por rádio CB: “Breaker one-nine, this is Rubber Duck…” (“Atenção, canal 19, aqui é o Pato Borracha…”). A música virou hino da liberdade sobre rodas e da camaradagem entre motoristas. >
Três anos depois, Sam Peckinpah levou esse universo ao cinema com Convoy (1978). Kris Kristofferson interpreta Rubber Duck, líder de um comboio que desafia a autoridade policial das estradas, cruzando o país em protesto.>
O filme amplia a mitologia da estrada e da resistência americana. O som do motor e o eco do refrão se fundem em uma jornada de rebeldia e solidariedade, a liberdade cantada em verso, agora filmada em movimento.>
*João Pimassoni é aluno do 28º Curso de Residência em Jornalismo da Rede Gazeta. A reportagem teve orientação e edição da editora Marcella Scaramella.>
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