Publicado em 17 de junho de 2024 às 11:02
Em "Bandida: A Número Um", filme de João Wainer que chega aos cinemas nesta semana, a violência nas favelas do Rio de Janeiro é retratada sob um ponto de vista incomum. Os holofotes estão na mulher - e uma mulher bandida, que não só dá apoio aos homens, mas protagoniza as cenas de ação.>
Ela é Rebecca, que chefiou o tráfico na Rocinha na década de 1980. A personagem, interpretada pela atriz Maria Bomani - que faz sua estreia como protagonista depois de atuar na novela "Amor de Mãe", da TV Globo, em 2019 e 2021 -, vive uma infância de desgraças e é apadrinhada por bicheiros que controlavam o morro.>
Ela chega ao posto de líder depois de um namoro arrebatador com Pará, chefe do tráfico que acaba morto e é interpretado por Jean Amorim, que viveu Pedro Bala no filme "Capitães da Areia", de 2011. O amor bandido é o centro da história.>
Com sua narradora feminina, o filme se distancia de obras como "Cidade de Deus", com Buscapé, um jovem observador, ou "Tropa de Elite", com Capitão Nascimento, um policial sob estresse.>
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"Um filme que começa com uma mulher que liga no volume máximo 'Deslizes', do Fagner, e depois joga uma bomba, não é um filme duro e seco", diz Wainer, que também acaba de lançar "Doleira", sobre outra personagem feminina - Nelma Kodama, a primeira mulher presa na Operação Lava Jato, na Netflix.>
O filme é baseado na história real de Raquel de Oliveira, autora do romance "A Número Um", publicado pela editora Casa da Palavra em 2015. Oliveira namorou Ednaldo de Souza, o Naldo, um dos mais conhecidos líderes do tráfico da Rocinha.>
Naldo chegou a ser o homem mais procurado pela polícia fluminense. Em 1988, ele deu entrevistas para os diários Jornal do Brasil e O Dia, que o fotografaram. Foi filmado disparando rajadas de metralhadora para o alto e lançou moda ao posar vestido com um casaco de capuz.>
O traficante foi morto numa troca de tiros com a polícia em julho daquele mesmo ano, num sítio numa favela de São Gonçalo, nos arredores da capital fluminense. Mais de 30 policiais e um helicóptero foram capturar o bandido.>
O filme retrata o episódio em que morreram Cassiano e Brasileirinho, que ficou famoso ao posar para uma fotografia de jornal ainda criança, armado e com cordões no pescoço. O retrato, publicado na mesma época do lançamento de "Pixote, A Lei do Mais Fraco", filme lançado em 1981, comoveu a cidade --na obra, um menino de 11 anos foge de um reformatório e acaba se tornando traficante, assassino e cafetão no Rio de Janeiro.>
"Eu levei dois anos para escrever o livro. No começo, sofri muito, chorei, mas quando o trabalho foi concluído eu estava liberta de todas as culpas, remorsos, arrependimentos", afirma Oliveira, a autora do livro que inspira "Bandida". "Tem momentos do filme em que minha memória volta lá, quase de forma sobrenatural. Vejo direitinho as coisas que aconteceram de verdade. E Maria está ótima. Ela cresce em cena.">
Da mesma forma que fez ao dirigir o documentário "Junho", produzido por este jornal e lançado há dez anos, retratando as manifestações que pararam o país em 2013, Wainer lança mão de imagens de arquivo de telejornais das favelas cariocas dos anos 1980, que eram diferentes.>
A Rocinha tinha mais de 200 mil habitantes em 1988, segundo as estimativas do governo. Era um bairro da cidade e políticos em campanha não demoravam a visitar a associação de moradores, disputada a dentadas pelos líderes comunitários. Havia eleição direta mesmo quando o país não elegia seu presidente.>
A favela também era tomada pelo lixo, não havia saneamento básico nem fornecimento de água. Foi também nessa época que a venda de cocaína disparou nas comunidades, e os traficantes trocaram revólveres por fuzis e submetralhadoras. Na Rocinha, começaram os conflitos, com o morro dividido entre parte alta e baixa e marcado por golpes e operações policiais.>
Outras cenas de "Bandida" foram gravadas com uma câmera Betacam, comprada especialmente para o filme. "Queria trazer algo que fosse esteticamente diferente e suave. A câmera que todas as principais emissoras de TV usavam era essa", diz o diretor.>
O longa foi gravado no morro Pavão-Pavãozinho, em Copacabana. "A sensação que tenho é que, quando estamos em externa, as gravações lembram o Jornal Nacional da época. Quando vamos para uma interna, lembram as novelas.">
Outra inspiração para a montagem, segundo o diretor, foi o TikTok. "Tenho filhas e vejo como essa geração lida com o TikTok e a sobreposição de informação. Ele tem uma linguagem suja. Partes do filme têm um ritmo um pouco mais frenético e alucinado que lembra esse ritmo.">
A Rocinha cresceu ocupada por famílias que saíram de estados do Nordeste em busca de renda no Rio de Janeiro. Elas ergueram barracos morro acima e garantiram moradia perto dos postos de trabalho da zona sul. Eram pedreiros, porteiros, garçons e empregadas domésticas em São Conrado, Leblon, Ipanema e Copacabana.>
Por isso, Wainer decidiu não mexer no sotaque de ninguém. O cantor pernambucano Otto, que interpreta o traficante Del Rey, fala como um homem pernambucano, assim como o baiano Jean Amorim e a carioca Maria Bomani mantêm suas origens.>
Mas a ambientação dos anos 1980 foi um ponto de atenção para o rapper carioca Sant, estreante nas telas no papel de Boca Mole, amigo de infância de Rebecca, que também entra para o tráfico.>
"O recorte do tempo em alguns momentos ressoou na cabeça porque uso gírias o tempo inteiro. Mas muitas dessas gírias eu recebi dessa malandragem das décadas de 1980 e 1990", diz. "A equipe técnica me ajudou demais. Foi tudo novo e tudo mágico.">
Raquel de Oliveira, que escreveu o livro no qual o filme se baseou, ainda vive na Rocinha e deixou a relação com o tráfico de drogas ainda na década de 1990.>
Além de escritora --ela também se dedica à poesia-- , Oliveira ainda trabalha como pedagoga e palestrante atualmente. "O que carreguei daquela vida foi a cocaína, da qual estou limpa há dez anos, e o amor. Naldo foi um homem maravilhoso na minha vida e nunca mais tive um amor como o dele", diz.>
"Mas a gente há de convir que, quando uma pessoa morre durante a relação, o amor fica estacionado naquele ponto, e as crises naturais de relacionamentos não são vividas. Fica uma coisa encantada, em suspenso.">
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