Publicado em 31 de maio de 2024 às 15:46
Na visão de Jesuíta Barbosa, Ney Matogrosso encarna vários animais. "Acho que tem um pássaro como primeira figura de possessão, a liberdade e o olhar altivo, de cima", diz o ator. "Mas é como aquelas figuras gregas, que têm pernas de cavalo da cintura para baixo. É uma mistura.">
Barbosa está no camarim do auditório do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o Masp, minutos antes de subir ao palco na pele do cantor retratado na cinebiografia "Homem com H", ainda sem data de lançamento.>
A cena traz o ator em performance de "Homem de Neanderthal" - sem camisa, com crina de cavalo e penas de aves -, a primeira música do primeiro álbum de Ney depois de deixar os Secos & Molhados, em 1975.>
Foi um período marcante na vida do artista, que já era um astro da música brasileira e passou a ter menos amarras para experimentar a sua criatividade. Essa cena, uma explosão de expressividade do corpo e do som, representa bem o que o roteirista e diretor Esmir Filho quer de seu filme - uma obra sobre a liberdade.>
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Não há, portanto, uma construção cronológica da vida de Ney, mas diversas situações em épocas diferentes em que ele atravessou desafios que o tentaram reprimir. "Para mim, é um recorte emocional", afirma o diretor. "Todas as cenas do filme têm a ver com isso.">
Têm a ver também com a relação de Ney com o pai sargento - a primeira e mais importante figura de autoridade em sua vida. A cena de "Homem de Neanderthal", num cenário adornado por elementos da natureza e a performance animalesca do cantor vivido por Jesuíta Barbosa, representa também um choque emocional, a primeira vez em que o sargento Matogrosso viu o filho em cima do palco.>
E foi justamente em seu show mais afrontoso - segundo o próprio cantor. "Aquele [Ney] animal veio depois dos Secos & Molhados, no primeiro show solo", ele disse, em entrevista. "Queria que as pessoas vissem o que quisessem. Era uma coisa tão ambígua, tão para todos os lados, que eu poderia ser um inseto, uma cobra, uma ave. Era esse grau de abertura que eu propunha.">
Barbosa diz que o Ney intrepretado por ele nessa cena do filme é agressivo num ambiente hostil de ditadura militar. "Ele estava assim 'sou um bicho e você vai ter que lidar com isso'", afirma. "O 'Homem de Neanderthal' também tem algo lisérgico - a sensação do bicho chegando e encontrando o homem. É uma ruptura, de quem sai da caverna, vê a luz e não se assusta com ela, sabe lidar. Como a gente sai e não fica cego perante o que acontece lá fora?">
Até então, o casal Antonio - pai do cantor, vivido por Rômulo Braga - e Beita - a mãe, papel de Hermila Guedes - só tinha visto Ney Matogrosso cantar na televisão.>
"Dizem que ele tomou calmante para ver aquele show", conta Braga, falando sobre o sargento Matogrosso. "De alguma forma, eles sabiam o filho que tinham." O pai de Ney, ele diz, representa a repressão. "Tem formação militar, foi para a Segunda Guerra Mundial, vem de uma família de posses ruralistas. Tem todo um contexto histórico. Ele é conservador de fato e não deixa de ser.">
Já a mãe, diz Guedes, teve participação na descoberta da arte pelo filho, e sempre esteve na torcida por ele. "A Beita influencia nessa liberdade", afirma. "Embora esteja num casamento com um militar, ela tem posições firmes, é uma mulher de atitude. Ela nunca abaixou a cabeça para o marido, e o Ney teve essa referência em casa. Talvez por isso ele também não tenha abaixado a cabeça para o pai.">
Além da infância e da formação de Ney, os pais aparecem pontualmente no filme, em alguns encontros e desencontros. Nessa convivência, diz Braga, os pais também acabam influenciados pela postura do filho. "Ele vai se transformando com o que os pais têm para oferecer, mas os pais também vão se transformando com o poder dele.">
Toda essa construção do roteiro foi acompanhada por Ney. Depois de pesquisar nas biografias e documentos disponíveis, Esmir Filho teve encontros e trocou mensagens com o cantor para tirar dúvidas e encontrar soluções. Quis saber mais sobre como ele se sentiu em situações da vida do que ter um retrato fidedigno dos acontecimentos.>
"Tem coisas ali que não sei se eu disse, mas poderia ter dito", disse o artista ao diretor. Ney, afirma Filho, não impôs restrições à narrativa, só pediu que se tomasse cuidado com a representação de outras pessoas.>
"Temos muita coisa da vida íntima dele", conta o diretor. "Conforme ele vive sendo contrário às vontades do pai, o vemos vivendo amores, afetos e desafetos. É um mergulho na vida pessoal, ele é muito franco.">
O filme acompanha o cantor desde a infância até meados dos anos 1990, depois da morte do pai e da epidemia de Aids. Tudo é entremeado e pautado pelas performances musicais de Ney no palco - são 11 números, passando pelos Secos & Molhados, "Bandido" e "Homem com H", além de "Homem de Neanderthal", entre outras canções.>
Jesuíta Barbosa até canta em algumas cenas, mas nas apresentações no palco são ouvidas as gravações originais, incluindo dos Secos & Molhados. Filho diz que a produção já tem autorização dos ex-integrantes para usar as faixas. A separação da banda, que até hoje gera embates de narrativas, é retratada por meio dos sentimentos do cantor.>
"Não fico dissecando pontos de vista", afirma o diretor. "O filme é o Ney, estou com ele." Nessas performances, o coração de "Homem com H", Barbosa encarna Ney usando todo o corpo. É algo que ele já sonhava fazer antes de o filme existir, em encontros casuais com o cantor no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, onde os dois moravam há uns anos.>
Barbosa dizia que queria interpretar Ney na telona, e ele em resposta botava pilha no ator. Já escalado para o papel, Barbosa teve encontros importantes com Ney. Num deles, soube de três pedras que o cantor ganhou de presente do pai. "Peguei uma delas, botei no peito e fiquei meditando", diz.>
"Aquilo representava muita coisa. Aquela pedra traduzia a relação dele com o pai e fazia muito sentido para mim. Os dois são militares, o meu pai e o dele, e conversamos bastante sobre isso." Desde a infância, Barbosa vê Ney como alguém "que te atravessa sem pedir licença".>
"Eu, criança, pensando em Ney Matogrosso, via alguém que quebra qualquer possibilidade de julgamento. Você pode falar da sexualidade, da música, mas vai além disso. Você pensa nele e ele já atravessou você. É preciso parar e refletir para entender. Não é óbvio. Você fica nu junto com ele para conseguir saber do que se trata.">
O Ney Matogrosso de "Homem com H", afirma o ator, é um espelho do cantor. "Ainda que seja uma cinebiografia, é uma ficção. Temos que ter liberdade. E acho que o respeito que ele tem com a arte dele é o que a gente tem que trazer no filme, sempre olhando para essa figura como referência. Essa integridade, para mim, é o mais interessante. E, claro, ao mesmo tempo ele é subversivo. Então a gente aqui também subverte, assim como ele faz no trabalho dele.">
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