Em livro, advogado capixaba convida leitor à reconstrução da memória racial brasileira

Com referências que vão de Walter Benjamin a samba da Mangueira, ‘Da chibata ao camburão’ reflete sobre a seletividade penal

O advogado Raoni Gomes

O advogado Raoni Gomes. Crédito: Divulgação/Alex Gouvea

De acordo com o Anuário Nacional da Segurança Pública de 2019, 64% da população carcerária, 75,4% das vítimas mortas por policiais e 51,7% dos policiais mortos naquele ano apresentavam algo em comum: a cor da pele negra.

Para o advogado criminalista e pesquisador capixaba Raoni Vieira Gomes, os dados escancaram como esse recorte racial está diretamente ligado ao passado escravocrata do país. Afinal, após mais de 130 anos desde a abolição da escravatura no Brasil, ainda persistem na sociedade a exclusão e a redução do povo negro – que é sistematicamente o alvo principal em todas as etapas da criminalização.

Em “Da chibata ao camburão – memória, raça e seletividade penal no Brasil” (Ed. Milfontes), o autor evidencia a necessidade de uma reconstrução da memória racial nacional como alternativa à seletividade do sistema de justiça criminal brasileiro.

“Uma vez que esquecimentos históricos acabam por gerar permanências e reiterações das mazelas, a memória acerca da escravidão é o principal antídoto ao nosso racismo estrutural”, defende Raoni.

Com capa assinada pelo designer Gustavo Mendonça, apresentação do historiador Luiz Antônio Simas e prefácio do Prof. Dr. Nelson Camatta Moreira (FDV-ES), o livro reflete sobre os efeitos da “abolição sem inclusão” ao longo dos anos no país.

Escrito entre 2019 e 2020, a obra é fruto da dissertação de mestrado de Raoni na Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e traz uma crítica sobre a maneira como a historiografia tradicional conta a história do processo de formação do Brasil. Para tanto, Raoni se propõe ao exercício de “escovar a memória a contrapelo”, conforme recomenda Walter Benjamin. Isto é, contar a história sob a perspectiva dos vencidos como forma de redimir o passado trágico, nas palavras do advogado.

A HISTÓRIA QUE A HISTÓRIA NÃO CONTA

O samba-enredo “Histórias para ninar gente grande” sagrou a Mangueira campeã do Carnaval do Rio de Janeiro no mesmo 2019 em que o livro-dissertação de Raoni estava sendo gestado. O autor encontrou semelhanças notáveis entre sua pesquisa e a letra da escola verde-e-rosa, que traz menções a diversos personagens fundamentais da história brasileira, como a vereadora e ativista carioca Marielle Franco, brutalmente assassinada em 2018; o jangadeiro abolicionista Chico da Matilde, conhecido como “Dragão do mar”, no Ceará; e a líder revolucionária Luiza Mahin, que esteve à frente da Revolta dos Malês, na Bahia. Tanto o samba quanto o livro se guiam pelo mesmo mote: exaltar aqueles que sofreram processo de apagamento ao longo dos séculos e rememorar as histórias não contadas, que não saem no retrato – o avesso da história do Brasil.

Além do samba da Mangueira, são referenciados na obra de Raoni outros ícones da cultura brasileira, como Aldir Blanc, João Bosco e Machado de Assis, cujas citações abordam a questão do racismo e da escravidão. “Existe a pele alva e pele alvo”, diz um dos trechos da canção do rapper Emicida, também pinçado pelo autor, e que funciona quase como uma síntese do protesto contido no livro: romper o continuum de violência e exclusão dedicado ao povo negro.

Outra autora que Raoni evoca no livro é Conceição Evaristo, com seu conceito de “escrevivência”, ingrediente que também ele põe em prática, sob uma perspectiva particular: “Escrever sobre história, memória, racismo, estado de direito e sistema de justiça criminal e indiretamente sobre o Brasil é uma soma de diversas dores. Talvez eu jamais seja o mesmo depois deste texto, pois nele me reconheci diversas vezes como homem negro e me encontrei com a história da minha família”, relata.

'Da chibata ao camburão', livro de Raoni Gomes

'Da chibata ao camburão', livro de Raoni Gomes. Crédito: Divulgação

"Da chibata ao camburão" indaga, ainda, para quem os direitos humanos se dirigem, já que a seletividade racial é também apontada pelo autor como indutora de violações a direitos e garantias fundamentais. Orientado por uma teoria da memória de viés Benjaminiano, aplicada ao Direito, Raoni luta por uma descolonização da "razão jurídica", apontando os horrores do sistema penal brasileiro, que produz historicamente um genocídio do povo negro, atingindo pessoas que são, além de negras, pobres e, em sua maioria, jovens.

"O racismo cria condições para o abismo social enfrentado pelos negros. A pobreza e a negritude no Brasil são rotuladas como um segmento carente, propenso ao crime, pois não teria alcançado a capacidade de se adequar ao que a contemporaneidade exige. Tal maneira de pensar causa consequências importantes nas ideias jurídico-penais brasileiras, já que suas agências construíram, ao longo da história dominante, uma visão que trata o povo negro como subcidadãos", explica.

Para Raoni, um trabalho de memória que contemple a todos é primordial para estabelecer um significado mais inclusivo da Constituição.

"As promessas descumpridas da Constituição Federal e a importância da memória como alternativa ao esquecimento chamam atenção para que existam direitos fundamentais para todos e um sistema de justiça criminal mais justo. O que se defende é que o passado trágico encontre, na Teoria da Constituição, um lugar de redenção, um lugar em que caibam todos os cidadãos brasileiros", finaliza.

SERVIÇO

  • “Da chibata ao camburão – memória, raça e seletividade penal no Brasil”
  • Autor: Raoni Vieira Gomes
  • Editora: Milfontes
  • 164 páginas
  • Preço: R$ 59,00

  • Lançamento | Noite de autógrafos
  • Participe de um bate-papo com o autor do livro
  • Dia 31/05 (terça-feira), às 19h, no Espaço Milfontes (www.instagram.com/espacomilfontes)
  • (Rua Carijós, n. 720 - Ed. Delta Center - Loja 1 - Jardim da Penha, Vitória)

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