> >
Raiva humana: entenda a doença que pode matar

Raiva humana: entenda a doença que pode matar

Se a pessoa não procurar por recurso médico, como a aplicação de vacina antirrábica ou soro, o vírus causa graves danos ao cérebro e ao sistema nervoso

Publicado em 6 de maio de 2022 às 10:49

Ícone - Tempo de Leitura 10min de leitura
Os morcegos são transmissores do vírus da raiva e podem atacar animais domésticos
Os morcegos são transmissores do vírus da raiva e podem atacar humanos e animais domésticos. (Divulgação)

Uma doença antiga, com alto poder de letalidade, voltou ao noticiário brasileiro recentemente. O Estado de Minas Gerais confirmou três mortes por raiva humana em abril deste ano. Os casos aconteceram todos em uma área rural do município de Bertópolis, na zona do Mucuri. As vítimas foram uma criança de 5 anos e duas de 12 anos.

O que se sabe, até o momento, é que em dois casos houve a transmissão por mordida de morcego. No terceiro, não havia sinais de mordida, arranhão ou lambida. As amostras coletadas posteriormente confirmaram o diagnóstico da doença. A investigação foi realizada pela proximidade geográfica das vítimas e os hábitos da comunidade. As informações são da Secretaria de Estado de Saúde de Minas (SES-MG).

Estudos devem ser realizados na localidade para descrever detalhadamente os casos suspeitos e confirmados da doença, seus sinais, sintomas, os hábitos e peculiaridades populacionais de relevância para o adoecimento, assim como saber como ocorreram os tratamentos clínicos. Na região, também está sendo feita busca ativa de pessoas que possam ter tido a mesma situação de risco dos casos suspeitos, informou a secretaria, em trechos de uma nota publicada.

Segundo o infectologista Crispim Cerutti, professor do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), o que acontece é inusitado. “Os óbitos por raiva são pouco frequentes, atualmente. Nós passamos anos a fio sem ter registro. Quando se tem a ocorrência de várias mortes no mesmo espaço há um problema grave de saúde pública, que demanda investigação e ações imediatas por parte das autoridades de saúde”, comentou.

Para se ter noção, no Espírito Santo, de acordo com a Secretaria de Estado de Saúde (Sesa), não há registro de casos de raiva humana desde 2003. Na época, um caso evoluiu para óbito, em um acidente com morcego. Já em Minas Gerais, o último caso de morte por raiva humana tinha ocorrido em 2012, no município de Rio Casca.

COMO OCORRE A TRANSMISSÃO

O professor relembra que no passado os principais transmissores eram canídeos e felinos domésticos, como o cão e o gato. Com as ações de vacinação destinadas a esses animais, hoje a origem do agente infeccioso mudou para animais selvagens: são raposas, coiotes e gato do mato. Mas o principal deles é o morcego.

Na verdade, Cerutti explica que qualquer mamífero, exceto ratos e ratazanas, pode transmitir o vírus. Mas como ocorre então o contágio? A maioria dos casos é por mordidas, arranhões ou lambeduras. 

Aspas de citação

A raiva humana é transmitida a partir da saliva dos animais infectados. De uns tempos para cá, a maior origem da raiva humana vem do contato com morcegos. O vírus pode ser transmitido por mordeduras, mas também por arranhaduras ou lambeduras

Crispim Cerutti
Médico infectologista e professor da Ufes
Aspas de citação

Há ainda outras formas de ser contaminado: "Uma coisa muito característica da mordedura do morcego é que ela pode ocorrer, naquele morcego que faz a alimentação de sangue, no período noturno quando a pessoa está dormindo, e a saliva dele conter uma substância anestésica. Pode acontecer da pessoa ser mordida por morcego e não perceber que isso aconteceu”, disse.

Uma delas é bastante rara, diz o professor. Ela ocorre em espaços fechados, onde há grandes concentrações de morcegos. “Por exemplo, em uma caverna ou em uma construção abandonada, uma pessoa entra nesse ambiente. Pode haver partículas de vírus suspensas no ar e a raiva ser adquirida por via inalatória”, concluiu Cerutti.

O infectologista Crispim Cerutti Junior orienta as pessoas a não deixarem tapetes na porta de casa
Infectologista Crispim Cerutti. (Reprodução/TV Gazeta)

EFEITOS

O vírus penetra no local da inoculação (onde ocorreu a mordida ou arranhão) e percorre as vias nervosas até o cérebro, onde causa o dano. Segundo o médico, na maioria das vezes causa a morte. Quando há recuperação, pode deixar sequelas graves. 

Aspas de citação

O vírus destrói as células do cérebro e isso provoca uma doença muito grave que, quase que na totalidade das vezes, causa a morte

Crispim Cerutti
Médico infectologista e professor da Ufes
Aspas de citação

"É possível tratamento com altos recursos, recursos complexos de fisioterapia intensiva, mas a probabilidade de recuperação é muito remota. Quando há recuperação, geralmente ele deixa sequelas graves, tal é o grau de destruição das células do cérebro", complementa.

Os sintomas são:

  • mal-estar geral;
  • pequeno aumento de temperatura;
  • anorexia;
  •  cefaleia;
  •  náuseas;
  •  dor de garganta;
  •  entorpecimento;
  •  irritabilidade;
  •  inquietude;
  •  sensação de angústia.

Em média, o período de incubação, até as primeiras manifestações da doença, é de 45 dias em casos de mordedura.

O que fazer quando sofrer algum acidente deste tipo?

A recomendação é procurar recurso médico para receber a vacina antirrábica.

Seringas serão necessárias para cumprir o plano de vacinação contra a Covid-19
A vacinação acontece após a exposição. (Pixabay)

VACINAÇÃO

É feita uma avaliação para verificar a gravidade e o nível de risco do paciente. A análise é baseada na profundidade da mordida, da quantidade de saliva no local da mordida e na área do corpo onde ela ocorreu. Onde há mais terminação nervosa, como na cabeça ou nas mãos, a gravidade é maior, falou Cerutti.

“A vacinação acontece após a exposição. Quando a pessoa se expõe à possibilidade da contaminação, ela é vacinada. De acordo com o nível de gravidade avaliado, será estabelecida uma abordagem para a aplicação da vacina”.

Dependendo do risco, pode ser necessária, além da vacina, a aplicação de anticorpos contra o vírus da raiva para evitar a ocorrência da doença.

Segundo o infectologista, determinados grupos de risco tomam a vacina antes da exposição. É o caso de veterinários, pessoas que trabalham com pecuária, em jardins zoológicos, e biólogos que atuam em laboratórios e manipulam animais vivos. Ou também em situação em que se pressupõe que vai haver exposição, como quem entra em cavernas, e quem faz investigações ambientais em espaços fechados.

“Isso não se faz de rotina, mesmo porque se houver um acidente, com inoculação do vírus, ela será vacinada de novo. A vantagem da vacina anterior é que ela melhora a resposta da pessoa depois do acidente”, explicou o professor.

SURTO

Diante dos casos registrados, pode acontecer uma disseminação do vírus? Não é algo esperado pelo especialista, porque não é assim que a doença se comporta.

“Ocorrências como essas, de óbitos relacionados, é algo improvável de acontecer. Se acontecer, é preciso se investigar e tomar as medidas necessárias dada a situação de aglomerado de casos, mas não se espera que isso se dissemine ou se estenda para a população em geral. Não é assim que a doença se comporta”.

Mas, pelas características apresentadas, casos em proximidade geográfica, ele comenta que ocorreu um surto em Minas Gerais. “Esse caso, em sentido estrito, é um surto porque há um agregado de casos em proximidade uns com os outros na mesma área, numa intensidade maior do que esperada. Normalmente se espera um caso de óbito a se perder de vista em relação a outros e não é o que acontece nesse cenário”.

HISTÓRIA

O registro da doença vem do século XX a.C. por meio de um decreto na antiga Mesopotâmia. Havia penalidades para donos de cães raivosos em que mordida causasse a morte de pessoas. O primeiro grande surto, descrito na história, é do ano de 1.271, quando uma vila foi atacada por lobos na França, em que 30 pessoas morreram com mordeduras. 

Há também referências de surtos na Espanha nos anos 1.500. Depois em Paris, em 1.614. Nesse período, o vírus se instalou praticamente em toda a Europa Central. Na cidade de Londres, na Inglaterra, por exemplo, entre os anos de 1.752 e 1.762, foi ordenado o sacrifício de cães de rua. Madrid, na Espanha, em um único dia, chegou a matar 900 cachorros. A raiva canina chegou às Américas no século XIX.

As informações estão disponíveis em um artigo publicado pelo Departamento de Higiene Veterinária e Saúde Pública, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Este vídeo pode te interessar

Os casos em Minas Gerais, em detalhe:

A Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) confirmou a terceira morte por raiva humana. Todas elas aconteceram durante o mês de abril e as vítimas são crianças moradoras da zona rural da cidade de Bertópolis, no Vale do Mucuri. Há ainda um quarto caso sob suspeita, de uma paciente que segue hospitalizada, em estado estável e em observação.

 O primeiro caso é de um paciente de 12 anos, que veio a óbito no dia 4. Sobre o segundo há mais detalhes: ele teve confirmação pelo laboratório de referência no dia 19, de uma paciente de 12 anos. O caso foi notificado no dia 5, seguido de internação hospitalar. No dia 13, ela teve piora clínica e foi transferida para uma Unidade de Terapia Intensiva. Ela veio a morte no dia 29. O terceiro foi confirmado no dia 26, de um menino de 5 anos, que morreu no dia 17, mesma data em que a secretaria foi notificada. O caso dele é diferente: a criança não apresentava sinais de mordedura ou arranhadura por morcego. 

Optou-se por investigar o óbito em função da proximidade geográfica das ocorrências e dos hábitos da comunidade, de acordo com os protocolos sanitários de prevenção e controle da doença. As amostras coletadas diagnosticaram raiva. Esse caso segue em investigação epidemiológica para identificação das circunstâncias do contágio.

O que está em suspeita foi notificado no dia 21. É de uma paciente de 11 anos, que apresentou sintomas inespecíficos como febre e dor de cabeça. Devido ao parentesco com o segundo caso confirmado, foi notificada como suspeita e encaminhada ao hospital de referência para a coleta de amostras. Os resultados ainda são aguardados. 

A SES-MG encaminhou doses de vacina antirrábica para completar o esquema de vacinação na comunidade rural de Bertópolis. Até 28 de abril, 982 pessoas das 1.037 haviam sido vacinadas com a primeira dose da vacina contra a raiva humana. Outras 802 pessoas já tomaram a segunda dose, observando-se um intervalo de até sete dias. 

A secretaria já havia fornecido vacina e soro antirrábico humano para a vacinação da população exposta e também vacina antirrábica animal para vacinação de cães e gatos da zona rural de Bertópolis. Na comunidade rural do município vizinho, Santa Helena de Minas, das 989 pessoas que residem no local, 593 foram vacinadas com a primeira dose. 

Assim que foi notificada do primeiro caso suspeito, a SES-MG adotou medidas imediatas e contínuas de prevenção e controle da raiva na localidade: 

 - Notificação e Investigação dos dois casos suspeitos, bem como comunicação imediata ao Ministério da Saúde; - Investigação epidemiológica imediata dos dois casos. A investigação é realizada na localidade de ocorrência da exposição dos casos suspeitos, com busca ativa de pessoas que possam ter tido a mesma situação de risco dos casos suspeitos; e em seguida com o encaminhamento para atendimento médico profilático na localidade; 

- Organização de reuniões periódicas para alinhamento e planejamento das ações de investigação dos casos e medidas de prevenção e controle da raiva, juntamente com a Secretaria Municipal de Saúde de Bertópolis, já ocorridas, nos dias 06, 07 e 08 de abril de 2022; 

 - Organização e realização de reuniões com a equipe médica local, da SES-MG e do Ministério da Saúde para alinhamento das condutas dos atendimentos antirrábicos na localidade (08 de abril de 2022); 

- Disponibilização de imunobiológicos para o tratamento profilático antirrábico humano (pós-exposição e pré-exposição, conforme o caso (vacina antirrábica e soro antirrábico); 

- Organização e monitoramento de vacinação dos contactantes do primeiro caso para início imediato no dia 09 de abril; - Organização e monitoramento de vacinação de pré-exposição para todos os moradores da localidade rural, para início também no dia 09 de abril de 2022; 

 - Disponibilização de 100 doses de vacina antirrábica animal para vacinação antirrábica de cães e gatos da localidade, conforme a população animal estimada para a área. A vacinação está sendo realizada na localidade, com objetivo de imunizar cães e gatos e com isso, implementar ações de prevenção e controle da doença. A ação está sendo realizada pelos agentes de Endemias da Secretaria Municipal de Saúde de Bertópolis com início em 06 de abril de 2022; 

 - Monitoramento das ações de campo desenvolvidas pelo Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) para ações de prevenção e controle da raiva na localidade. Este está na região, e realiza investigação epidemiológica, para verificar espoliações de morcegos em animais de produção, presença ou relato de mortes de animais com sinais clínicos neurológicos, bem como informações sobre a realização de vacinação antirrábica. Foram realizados ainda contatos com produtores rurais, informando sobre as formas de prevenção da raiva dos herbívoros;

 - Realização de ações de educação em saúde na região com objetivo de alertar as pessoas sobre a doença, e suas formas de transmissão, bem como as medidas de prevenção e controle da raiva; 

- Organização e realização de webinário para profissionais de saúde do estado de Minas Gerais sobre atualização do atendimento antirrábico humano, em 19/04/2022. 

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais