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Pianista Jonathan Ferr fala sobre música, violência e racismo

Pianista Jonathan Ferr fala sobre música, violência e racismo

Instrumentista se apresenta no Estado neste sábado (19), como atração do "Marien Calixte Jazz Music Festival"

Publicado em 19 de outubro de 2019 às 10:21

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Jonathan Ferr, pianista. (João Victor Medeiros/Divulgação)

Jonathan Ferr... Guarde esse nome, pois você ainda vai ouvir falar muito dele. Os motivos? São vários... O pianista carioca, de 32 anos, é talentoso, com excelente gosto musical (tem como referências artísticas, nomes como John Coltrane, Ed Motta, Herbie Hancock e Miles Davis) e um intenso amor pela arte - e toda a revolução social e cultural que ela pode proporcionar.

Nascido e criado no Morro da Congonha, em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, o músico está ganhando elogios em todo o mundo por ser um dos precursores do Urban Jazz, uma salada pop que mistura elementos do hip-hop, da música eletrônica, do samba e até do funk. “Tudo para dar uma nova roupagem ao jazz e tirar um pouco o seu ranço de elitista. Quero levar o gênero de volta às ruas”, pontuou o artista, durante entrevista para A Gazeta.

Curioso para conferir esse estilo musical? Jonathan Ferr (que, na verdade, é Jonathan Ferreira) é uma das atrações do “Marien Calixte Jazz Music Festival”, que acontece em Vitória neste sábado (19). Veja o serviço completo do evento no "Divirta-se".

Espetáculo à parte, Ferr, um homem politizado e ativista social quando o assunto é direito dos afrodescendentes, conversou com a reportagem sobre assuntos espinhosos, como a crise na segurança pública no país e a perda de direitos sociais das minorias. Lógico que também teve espaço para a cultura, como a abordagem das características do jazz urbano e como é ser um dos expoentes do chamado afrofuturismo, ao lado de nomes como os das cantoras Xênia França, Larissa Luz e Doralyce.

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    Quem falou que eu também não gosto de funk e de samba? (risos). Sou de Madureira, portanto, elementos desses ritmos são universais para a minha formação artística. Venho de uma família evangélica, portanto, tinha muita música em casa. Sempre fui aberto a todos os estilos. Quando criança, queria ser baterista, mas, um dia, ganhei um tecladinho de brinquedo do meu pai. Fiquei fascinado (risos). Passava o dia inteiro tentando tocar... Até que fui ouvindo as músicas e, estudando, consegui tocá-las, especialmente as faixas de Tom Jobim. Uma vez, meu pai perguntou qual disco queria ganhar. Escolhi “Sweet Anointing”, de Jimmy Swaggart. Descobri que queria ser pianista.

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    Somos de uma família humilde. Comecei aos nove anos, meio que autodidata, tocando sozinho. Por um tempo, meus pais pagaram o curso, mas depois tive que me virar. Comecei a vender cloro e água sanitária para pagar minhas aulas. Logo depois, com muito esforço, consegui um bolsa. Tenho muito orgulho dessa história.

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    Nasceu da ideia que sempre quis de desconstruir o jazz, de tirar do estilo a imagem de inacessível. Levar o ritmo para as ruas e pensá-lo fora das salas de concertos. Tem uma mistura do clássico, com elementos do hip-hop,  samba,  soul,  funk,  neo soul e do drum and bass, por exemplo. Todos os ritmos fizeram parte da minha formação. Na adolescência, ouvia muito rock bandas de death metal e new metal. Curtia Racionais MC’s. “Black Radio”, um dos trabalhos definitivos de Robert Glasper, foi um dos propulsores para que iniciasse a concepção do jazz urbano. Na verdade, o conceito ultrapassa a música. Também parto da ideia de mudar o comportamento das pessoas. Tento tocar aquilo que a minha geração gosta de ouvir, de falar e de vestir. O desejo é conectar com o caráter cosmopolita dos grandes centros.

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    Sim, será uma parte do espetáculo assistido pelos cariocas (Ferr foi o único músico instrumental do evento). Vou apresentar um pouco do meu primeiro álbum, “Trilogia do Amor”, em que trabalho alguns elementos da música urbana, tanto que dividi o disco em três partes, como passagens sensoriais: “A Jornada”, “O Renascimento” e “A Revolução”. Também quero apresentar o curta-metragem “A Jornada”, em que pretendi trabalhar o conceito de afrofuturismo, colocando o negro como protagonista de sua própria história. O jazzista Sun Ra foi uma influência na construção dessa estética..

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    Foi muito difundido após a estreia de “Pantera Negra” (2018), mas é bem mais antigo (o movimento tem esse nome por conta de um termo criado em 1993, pelo crítico Mark Dery). É mais do que uma questão estética, que engloba cores e roupas estilosas, com pegada futurista. Passa por um conceito maior, uma questão social: a busca da autoestima do povo preto. Combina elementos da ficção-científica, mas sempre preservando a cultura africana, com temáticas que retratam os dilemas da população. Tocamos em questões como o o racismo e a discriminação social pela qual o negro passou em toda a sua história.

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    A violência ostensiva contra a favela é um reflexo muito nítido de todo esse processo histórico de marginalização. Realmente, me impressiona como a morte de pessoas das comunidades são ignoradas. Somos capazes de nos sensibilizar quando acontece uma tragédia em qualquer país da Europa, mas não nos indignamos quando uma criança ou um trabalhador é covardemente assassinado. A menina Ágatha, uma jovem brilhante, que era apaixonada por dança, poderia ser uma grande artista, uma advogada, ou quem sabe uma cientista que descobriria a cura de uma doença que salvaria milhões. Infelizmente, nunca saberemos. Não é sobre preconceito social, como muitos acreditam, e sim sobre uma crença, que habita o inconsciente coletivo brasileiro de que a vida negra tem menos valor. Baseado nisso, torna-se permissível e aceitável todos os níveis de atrocidades. Todos estes casos vão virando estatísticas. A sociedade normatizou a violência contra corpos negros. Herança de um país escravagista que sofre até hoje as dores de ter sido obrigado a abolir a escravatura, que venera uma princesa branca que pouco, ou nada, teve a ver com isso. Um país forjado, no sonho eugenista de uma nação branca, que chora ao se deparar com um Brasil majoritariamente negro. A violência só vai diminuir quando todos se conscientizarem de que esta luta contra a violência não é só dos negros brasileiros, é de todos. Nós, homens negros, somos os que mais morrem por violência policial, as mulheres negras são as que mais morrem pelo feminicídio. Todas as vidas são importantes, mas é importante pensar o porquê disso? É difícil apontar um culpado, mas acredito que a sociedade como um todo deve se responsabilizar por cobrar mudanças. Não adianta ficarmos atrás de nossos celulares postando hastags, pois o mundo precisa de ações reais, micropolíticas de conscientização. Não é armando as pessoas que vamos diminuir a violência, mas sim com educação e arte. Acredito que são armas muito mais poderosas.

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O inconsciente coletivo do brasileiro acredita de que a vida negra tem menos valor

Jonathan Ferr
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    Quando digo que sou músico, as pessoas acham que toco pandeiro e sou do samba. Não esperam um pianista de jazz. Por mais que o jazz tenha sua origem negra, no Brasil, ele é uma música da elite branca. Sempre que vou a shows de jazz no Brasil, nós negros somos minoria no palco e na plateia. Essa hiperintelectualização do jazz afastou as pessoas dessa música maravilhosa. Ser negro no Brasil é saber que, em algum momento da vida, alguns espaços lhe serão negados. Descobri que era preto ouvindo o grupo de rap Racionais, quando eu tinha 18 anos. Porque ser negro não é só sobre ter a pele escura, mas é também sobre estar conectado com sua ancestralidade e sua história, é se entender em uma sociedade que privilegia certos corpos em detrimento de outro. Quando era mais jovem, negava minha negritude de forma veemente. Antes de me entender como negro, gostava quando me chamavam de "moreninho", um termo racista para invisibilizar corpos negros. Também não namorava meninas pretas, não gostava da minha boca, do meu nariz, do meu cabelo e etc. Vivia em um mundo de negação absoluta de mim mesmo. Hoje, aos 32 anos, me acho lindo! E isso só aconteceu por conta das referências dos artistas que recebi, e que não foram muitas. Ser pianista negro é também um ato político e uma mensagem às novas gerações de crianças negras, de que elas podem ser o que quiserem. O Brasil é racista e precisa assumir isso para que avance nesses debates. Como solução, é importante termos essa diversidade de pessoas nas capas de revistas, na arte, na TV, na imprensa, nos palcos e no backstage.

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Jonathan Ferr, pianista. (João Victor Medeiros/Divulgação)
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    Acredito que a música e a arte podem reverter muitas coisas. Através dela, acessamos toda a nossa subjetividade, nos tornamos senso crítico de nós mesmos, e da sociedade em que vivemos. O estado atual não quer ser criticado, tem medo. Como diz MV Bill, "Quem pensa, incomoda. Não vira massa de manobra." Censurar é mais fácil do que querer acertar. Prova disso a censura aos filmes, teatro e exposições. Isso só prova o quanto essas artes influenciam. A arte é um arma de pensar. É um gatilho para abrir a mente para que novas ideias se estabeleçam. E como diz Eistein "Uma mente que se abre para uma nova ideia, jamais retorna ao seu tamanho original". Acredito que, para contornar os cortes e censuras, temos que fazer o que nós, artistas, sempre fizemos, que é lutar e seguir produzindo.

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Vivemos em um país que acredita em “salvador da pátria”. Isso é literalmente um mito.

Jonathan Ferr
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    Viemos de uma ascensão geopolítica como uma das mais potentes economias do mundo. Lamentavelmente, o cenário agora é outro. Vivemos uma crise que se alarga em todas as esferas: política, social, econômica e financeira. O problema é que o povo sempre paga o pato, quer dizer, os mais pobres. Vivemos em um país que acredita em um “salvador da pátria”. Isso é literalmente um mito. É ilusório achar que um politico X ou Y vai salvar um país, ou que, de uma hora para oura, vai acabar com todas as mazela. Infelizmente, as pessoas votam acreditando em super-heróis. E por isso a educação é tão importante, para criar um indivíduo critico que não acredite em qualquer conto de fadas, principalmente no que é dito em período eleitoral. Enfim, não existe mágica. Precisamos de gestores engajados com agendas que são urgentes para o Brasil, como: desemprego, fome e educação. Enquanto a preocupação maior for de quem transa com quem, quem beija quem, não avançaremos em nada. A idolatria cega torna o indivíduo um fundamentalista político.

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