Publicado em 18 de março de 2020 às 08:25
Centenas de pessoas se amontoam em grupos nas quatro esquinas das ruas Frei Caneca e Peixoto Gomide, em São Paulo. Elas bebem, conversam, fumam, paqueram e dão risadas antes de entrar em alguma das tantas baladas da região ou apenas ficar curtindo a noite com os amigos na calçada. Parece um fim de semana normal, e os carros passam bem devagar devido ao grande volume de gente.>
A um quilômetro dali, o movimento de veículos é constante em frente ao clube de música eletrônica Jerome. Cinco frequentadores esperam para falar com a hostess, a fila para ser revistado pelo segurança soma dez pessoas, enquanto cerca de outras 30 acendem cigarros e batem papo no cercado que delimita o fumódromo da balada. É noite de casa cheia, segundo um taxista que faz ponto no local.>
Meia hora mais tarde, por volta das 2h, em uma balada na região da Luz, o techno bomba das caixas de som para uma pista de dança com centenas de jovens. A festa está menos lotada do que o habitual, mas ainda assim tem público suficiente para seguir até de manhã. Diversos frequentadores usam máscaras cobrindo o nariz e a boca - mas não como medida sanitária, e sim como acessório para compor o visual.>
Na madrugada de sábado para domingo no último fim de semana, fui a bares e baladas na região central da capital paulista - Baixo Augusta, Higienópolis e Luz - para entender como a Covid-19 pode alterar a rotina boêmia da cidade e se as pessoas já estão evitando aglomerações, uma das medidas para coibir a expansão do vírus.>
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A ameaça de infecção não foi suficiente para fazer o público ficar em casa neste que pode ter sido o último fim de semana de vida noturna de relativa normalidade para os paulistanos, agora diante da ameaça de fechamento generalizado de estabelecimentos.>
"São duas forças que se opõem --a força de você querer se precaver, e a força de você querer celebrar a proximidade do fim", diz o empresário Facundo Guerra, sócio do Cine Joia, da boate Lions e dos bares Blue Note e dos Arcos.>
Ele cita como exemplo casas de striptease na Itália que, mesmo com a ameaça de quarentena no país, ficaram abertas 48 horas seguidas. Segundo Guerra, existe um espírito de que "todo mundo sai e foda-se, porque o mundo vai acabar de qualquer maneira". "Mas esse impulso é também um pouco egoísta, porque você vira um vetor de transmissão", acrescenta. Embora os jovens sejam os menos afetados pela doença, eles podem transmitir o vírus para grupos de risco como idosos, segundo infectologistas.>
Na porta do clube Aloka, tradicional ponto de encontro de jovens gays na rua Frei Caneca, o estudante de publicidade Ralf Santos, 19, afirma que não pensou duas vezes antes de sair. "Isso é uma bactéria para controle populacional. A epidemia começou no Japão, certo? No Mediterrâneo." Corrijo a informação e digo que a epidemia surgiu na China. Seu amigo Hugo Mariano, biólogo de 20 anos, também diz não ter medo de ir para a balada no atual contexto.>
A poucos metros dali, Edineuza Menezes, 39, esperava na calçada lotada com seu filho adolescente para entrar na casa noturna Terraço. Ela relatou ter receio de pegar a doença, sobretudo porque alguns casos de coronavírus já foram relatados na zona leste, onde mora, mas a vontade de sair foi maior. Como medida preventiva, ela e seus amigos traziam presos ao pescoço seus próprios copos plásticos para beber cerveja, que prometiam não dividir com ninguém. Também afirmaram terem usado álcool em gel.>
Na frente do bar Eagle, na rua Augusta - que sediava o concurso de Mister Urso Brasil 2020 -, Leonardo Meireles fumava com calma e contou não ter medo. Segundo ele, o risco de contágio é baixo. "É uma histeria causada pela mídia", afirmou.>
Histeria ou não, o temor da proliferação do vírus em pistas de dança abarrotadas fez com que outra festa voltada a homens gays, gordinhos e peludos --os chamados ursos-- cancelasse sua edição. A Ursound, que reúne mais de 800 pessoas por evento desde 2005, teria sido realizada no clube do hotel Cambrige, próximo ao metrô Anhangabaú, mas foi suspensa.>
Atitude semelhante teve a Carlos Capslock, festa que aconteceria na Galeria Olido, no domingo à tarde. No dia 13 de março, a prefeitura paulistana cancelou todos os eventos organizados pelo poder público com aglomeração de pessoas, dentre os quais se incluem festas em equipamentos culturais. "Precisamos depositar nossa crença na ciência e na capacidade de nossa comunidade em enfrentar essa crise", afirmou a produção da balada de música eletrônica em nota numa rede social.>
Se as baladas estão ficando, literalmente, no escuro, o apagão se estende à cadeia de profissionais que faz a gigantesca noite de São Paulo acontecer. Embora o governo do estado tenha afirmado que não proibirá eventos privados, o governador paulista João Doria recomendou que sejam evitadas reuniões sociais com mais de 500 pessoas, o que afeta em cheio as casas noturnas.>
Músicos, DJs, performers, promoters, bartenders, seguranças, faxineiros e empresários devem ver seus rendimentos minguarem quando as luzes se apagarem de vez. Boa parte desses trabalhadores não têm emprego com carteira assinada e dependem de um setor que vive de promover aglomerações, seja na pista de dança, no mesa do bar ou na calçada.>
Facundo Guerra diz que, se as casas noturnas forem obrigadas a fechar, haverá uma hecatombe no setor, já que a indústria cultural vem de dois anos seguidos de recessão. A recuperação que se desenhava em 2020 está sendo interrompida pelo coronavírus.>
Neste início de semana, quando a ficha da gravidade da pandemia parece ter caído para produtores e empresários da noite, diversos clubes anunciaram o fechamento por tempo indeterminado, e um sem número de festas foi cancelado ou adiado.>
Mesmo com as atividades suspensas e com uma turnê por quatro festivais na Europa ameaçada devido à expansão do vírus, o produtor e DJ Gezender traz uma palavra de esperança. "Depois de um tempo, as coisas voltam ao normal. As pessoas não vão parar de beber e se divertir.">
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