Publicado em 3 de março de 2021 às 16:35
- Atualizado há 5 anos
Cinderela, Aurora e Bela eram francesas. Branca de Neve e Rapunzel, alemãs. Ariel provavelmente habitava os mares do país de origem de seu criador, a Dinamarca, e Pocahontas e Tiana moravam nos Estados Unidos. Mais tarde, vieram Elsa e Anna, da Noruega, e Merida, da Escócia. >
Tudo o que acontecia fora do eixo Estados Unidos-Europa nunca pareceu atrair muitos dos olhares obcecados por realeza da Disney. É bem verdade que Mulan, chinesa, e Jasmine, árabe, entraram para o rol de princesas do estúdio já nos anos 1990, mas parece que só agora Mickey Mouse está dando mais atenção --e de forma autêntica, de fato representativa-- aos países deixados de fora do clubinho do primeiro mundo.>
Desde "Moana", lançado há cinco anos, a representatividade vem se tornando quase que uma prioridade entre as animações da companhia. A princesa polinésia que se lança ao mar para salvar seu povo fez centenas de milhões de bilheteria e desbravou um terreno fértil tanto no quesito empoderamento feminino, quanto na diversidade geográfica.>
Agora, "Raya e o Último Dragão" tenta repetir o sucesso. Com estreia nesta quinta nos cinemas e, no dia seguinte, no streaming Disney+, o longa animado se passa na fictícia terra de Kumandra, criada a partir de um apanhado de culturas do Sudeste Asiático, como a malaia, a cambojana e a tailandesa.>
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O longa acompanha a guerreira e princesa Raya, que precisa encontrar o último dragão ainda vivo para destruir entidades malignas que vagam pelo mundo transformando as pessoas em pedra. Para isso, ela tem de unir as diferentes e hostis tribos que formam a terra fictícia.>
Em conversa por videoconferência, um dos roteiristas da animação, Qui Nguyen, americano com ascendência vietnamita, celebra o fato de sua história estar chegando às telas de uma forma que respeita a cultura de seus antepassados. É especialmente importante para ele que seus filhos possam assistir ao filme e se ver nele.>
"Há uma diferença entre diversidade e representatividade. Diversidade é você fazer um filme com personagens diferentes, mas sem qualquer complexidade ou importância", diz. "Mas representatividade é quando esses mesmos personagens ganham arcos narrativos completos, tempo de tela e substância.">
E de fato esse é o caso de "Raya", depois de enganos crassos do passado. Lá atrás, nos anos 1990, a animação "Mulan" foi rejeitada pelo público chinês porque, apesar de narrar a história de uma de suas maiores heroínas, continha retratos ofensivos da cultural local. Já "Aladdin" envelheceu mal por só ter brancos em seu elenco de voz principal.>
Os erros foram corrigidos pelas versões em live-action das duas histórias, lançadas no ano passado e retrasado. Dessa vez, atores que respeitam a ascendência dos personagens foram escalados e membros das culturas chinesa e árabe estiveram nos bastidores. Com "Raya", a Disney agora se volta para outras regiões do mundo com um olhar mais atento e que extrapola os traços dos desenhos.>
Vale lembrar, no entanto, que no novo longa a cadeira de direção seguiu reservada a um homem branco e a um latino. Os cineastas Don Hall e Carlos López Estrada reconhecem que estão em terreno desconhecido e assumem que há muita responsabilidade no papel que ocupam em "Raya" e garantem que se cercaram de asiáticos para a execução do projeto.>
A equipe também embarcou numa série de viagens de pesquisa à região. Foi graças a elas que conseguiu conceber os visuais deslumbrantes de "Raya", com suas lutas que evocam artes marciais, cuidadosamente coreografadas, e os cenários coloridos e ricos em detalhes. Aqui, a inventividade da Disney se alia a aspectos realistas da cultura asiática, que aparecem no preparo de uma refeição ou nos figurinos das personagens.>
Tudo, claro, sob a bandeira da diversidade --e de olho nos assinantes do Disney+ no populoso Sudeste Asiático, que devem superar a Netflix em alguns países, e nos mercados cinematográficos locais, em rápida expansão. A inferência de que as bilheterias americanas já não garantem, sozinhas, o sucesso de um filme, faz a Disney voltar a atenção cada vez mais para o estrangeiro.>
Mais do que isso, o ambiente da empresa está tentando refletir esse multiculturalismo para encontrar, assim, novas narrativas sobre as quais se debruçar, como contam dois animadores brasileiros que trabalharam em "Raya", Vitor Vilela e Ivan Oviedo.>
Até os anos 2000, só 9 dos 49 filmes do Walt Disney Animation Studios foram ambientados --ou, no caso de tramas em regiões ficcionais, representavam a cultura-- de países fora da Europa e da América Anglo-Saxônica.>
São eles "Mogli - O Menino Lobo", "Bernardo e Bianca na Terra dos Cangurus", "Aladdin", "O Rei Leão", "Mulan", "Tarzan" e "A Nova Onda do Imperador". "Alô, Amigos" e "Você Já Foi à Bahia?", com Zé Carioca e Panchito, vale lembrar, faziam parte de uma estratégia para bajular o Brasil e o México durante a Segunda Guerra Mundial.>
Desde 2010, o estúdio lançou quatro filmes com cenários europeus, três impossíveis de localizar --"Detona Ralph" e sua sequência, dentro dos videogames e computadores, e "Zootopia", com sua metrópole animalesca-- e mais três que olham para outras partes do mundo. São eles "Moana", "Operação Big Hero", se considerarmos que a cidade de San Fransokyo é metade americana e metade japonesa, e agora "Raya".>
Ainda neste ano, a Disney planeja lançar "Encanto", animação que se passará na Colômbia, enquanto a Pixar também ajuda na estratégia. Depois do mexicaníssimo "Viva: A Vida É uma Festa", o estúdio prepara um longa sobre uma sino-americana que se transforma em panda vermelho e estreia, em junho, "Luca", passado numa Itália distante dos estereótipos de países ricos europeus.>
"Fico muito orgulhosa por estarmos começando a ver histórias mais diversas nas telas. Se você olhar para as vozes de 'Raya', vai ver que muitos dos atores fazem parte dessa evolução", diz a intérprete da personagem-título, Kelly Marie Tran, sobre os colegas de elenco Awkwafina, Gemma Chan, Benedict Wong e Sandra Oh. "Sempre haverá mais trabalho a ser feito, mas fazer parte dessa mudança é emocionante.">
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