É jornalista e escritora, escreve quinzenalmente a coluna Sextas Crônicas

Os robôs não são a grande ameaça à humanidade, os desumanos, sim

Nada contra o networking. Sobre isso acho o óbvio: útil. Mas é o inútil contido nas humanidades que nos tornam mais interessantes, eventualmente, até para fazer negócios

Vitória
Publicado em 19/04/2024 às 02h00

Quanto se ganha por ler uma poesia? Ou por deixar a música invadir e mudar a batida do coração? Qual o valor de ter o fôlego interrompido diante de uma escultura, de uma flor ou do pôr do sol? Quanto vale o que nos faz mais humanos? É na ampliação do sentir que percebemos o mundo e nos implicamos nele. O que nos preenche a alma não é palpável, quantificável ou útil, mas é o que embeleza a vida e para isso não há preço.

Ninguém sabe o momento exato que vai realizar essa verdade, talvez porque esse momento nem exista, é aos poucos que a gente se humaniza, e isso é o oposto do processo de desumanização, que ocorre rápido, devasta amizades, amores e famílias, como uma peste ou uma guerra.

A praga do utilitarismo corrói os bons afetos. As relações humanas pautadas por ele são empobrecedoras, tornam o mundo pior, não importa o que de longe possa parecer.

Somos razão, mas existimos, com grandeza, é na sensibilidade.

Sou inconformada com o embrutecimento do mundo. Diante de tantas possibilidades da humanidade dar um salto de consciência, entristece ver pessoas com o coração mais árido, menos dispostas a se deixarem afetar por relações humanas baseadas na ausência de utilidade.

Nada contra o networking. Sobre isso acho o óbvio: útil. Mas é o inútil contido nas humanidades que nos tornam mais interessantes, eventualmente, até para fazer negócios.

Só um desumano pensa até na última hora na utilidade de um cadáver para assinar um empréstimo bancário. Uma notícia banal, que amanhã será esquecida entre os milhares de pequenos horrores cotidianos, em uma sociedade cada vez mais anestesiada, que não se deixa afetar.

Não são os robôs a grande ameaça à humanidade, são os desumanos.

Mulher feliz no pôr do sol
Pôr do sol. Crédito: Shutterstock

As disciplinas humanísticas pedem passagem como antídoto à barbárie da utilidade. A desumanidade turva a compreensão da realidade óbvia e permite cegueiras coletivas, que abrem espaço para aberrações comportamentais. Exige esforço, mas é preciso dedicar mais tempo para resgatar valores comunitários.

As relações baseadas em princípios mais humanos melhoram as pessoas. A riqueza interior supera o lucro. Apoiar o ensino de novos conceitos de riqueza baseados em sentimentos e não em matéria é remédio para um mundo adoecido e autodestrutivo.

Nesse meu falatório de discurso interno, encontrei tanta gente para conversar, de Rubem Alves, que eu adoro pela simplicidade de resumir temas complexos, pelo respeito à acessibilidade da palavra, ao escritor italiano, autor do livro Utilidade do inútil, Nuccio Ordine – já fica essa dica de leitura. Amo esse filósofo contemporâneo. Infelizmente, ele faleceu no ano passado. Adoraria passar uma tarde com ele conversando sobre tudo, sem expectativa de nada. Apenas vivendo um dia incrível, ao lado de um outro ser humano.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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