Publicado em 13 de maio de 2020 às 15:36
A escritora Iris Abravanel, que é evangélica e esposa de Silvio Santos, rogou a Deus para abençoar o Brasil e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). O padre-cantor Reginaldo Manzotti entoou um de seus sucessos. O pastor Silas Malafaia citou trechos da Bíblia.>
No domingo de Páscoa, em 12 de abril, líderes religiosos participaram ao longo de 2 horas e 19 minutos de uma transmissão ao vivo com Bolsonaro, a título de celebrar a data e transmitir mensagens de paz. A live foi exibida, como de costume, nas redes sociais do presidente, mas também na TV Brasil.>
O uso da programação da emissora pública para o encontro virtual com representantes do cristianismo e do judaísmo violou a Constituição, o princípio do Estado laico e a legislação que criou a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), na visão da Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos).>
A entidade entrou na Justiça contra o governo federal, o presidente da República e a EBC pedindo que Bolsonaro fique proibido de repetir iniciativas do tipo e seja condenado a pagar R$ 100 mil por danos morais coletivos. O caso está na Justiça Federal do Distrito Federal.>
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O uso da emissora pública também sofreu críticas do relator da OEA (Organização dos Estados Americanos) para a liberdade de expressão, Edison Lanza, e de entidades como a Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas), a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e a Comissão de Empregados da EBC.>
Apesar do conteúdo religioso, a live virou notícia na ocasião por outra razão: uma frase de Bolsonaro minimizando a pandemia da Covid-19. Na contramão do que sustentavam os especialistas, ele afirmou que o vírus estava "começando a ir embora" do país. A doença já matou mais de 8.000 brasileiros.>
No início do vídeo, o presidente disse que participariam cerca de 40 líderes, mas nem todos surgiram na tela. Apareceram, por exemplo, o pastor e deputado federal Marco Feliciano (Republicanos-SP), aliado fiel de Bolsonaro, os pastores e cantores André Valadão e Eyshila Santos e o missionário R. R. Soares.>
Também foram convidados: o bispo católico dom Fernando Antônio Figueiredo, o rabino Leib Rojtenberg, o casal fundador da Igreja Renascer em Cristo, apóstolo Estevam e bispa Sônia Hernandes, o bispo Robson Rodovalho, da Sara Nossa Terra, e a banda Ministério Atitude, famosa no segmento gospel.>
Emulando a profissão do marido, Iris Abravanel fez as vezes de apresentadora e conduziu a dinâmica. O SBT, emissora de Silvio, chegou a exibir boa parte da videoconferência dentro de sua programação.>
A Atea entendeu que o episódio envolvendo a TV Brasil se somou à "sistemática violação da laicidade do Estado" por Bolsonaro. Constitucionalmente, nenhum ente público pode intervir em matéria religiosa.>
"A utilização da emissora para atender a interesses privados do presidente e de segmentos religiosos fere, indiscutivelmente, o interesse público. Está na hora de o Poder Judiciário frear isso", diz a entidade.>
O caso da live ainda contém um agravante, segundo Thales Bouchaton, advogado da Atea que ingressou com a ação civil pública. "Além de uma violação frontal à Constituição, houve uma manifestação de preferência e favorecimento da Presidência por determinadas crenças", afirma.>
A lei de criação da EBC, de 2008, veda "qualquer forma de proselitismo na programação das emissoras públicas de radiodifusão". A estatal também administra a Agência Brasil e as rádios Nacional e MEC.>
Os veículos, em tese, devem oferecer "programação educativa, artística, cultural, informativa, científica e promotora de cidadania". Em 2019, Bolsonaro colocou um militar da reserva para comandar a EBC, o general Luiz Carlos Pereira Gomes.>
Na nota conjunta em que repudiaram a live com os religiosos, a Comissão de Empregados da EBC, a Fenaj e os sindicatos dos jornalistas do Distrito Federal, do Rio de Janeiro e de São Paulo afirmaram que o episódio "marca o mais grave momento de instrumentalização da TV Brasil" no atual governo.>
As organizações disseram que "a emissora vem sofrendo diversos casos de censura apontados pelos jornalistas da casa, retirou do ar programas culturais e de cunho LGBT e oferece em sua programação apenas a versão do governo federal dos fatos, sem espaço para o contraditório".>
A possível afronta à Constituição é rebatida por estudiosos como Jean Marques Regina, que é especialista em direito religioso e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião.>
Para ele, Bolsonaro possui "legitimidade política e constitucional" para fazer a live, porque ela contemplou "a diversidade religiosa cristã" e "a fé é bem conceituada" pela maior parte da população brasileira.>
"A laicidade do Estado não é um conceito fechado. Cada país, de acordo com sua história do relacionamento entre poder político e religião, molda institucionalmente as interações", diz Regina à Folha.>
Ele, que também atua como advogado de igrejas, discorda da Atea e considera que não houve excesso no episódio. "Foi um bate-papo informal, não uma cerimônia religiosa propriamente dita. O presidente se reuniu com líderes para uma palavra de ânimo e encorajamento.">
Fundada em 2008, a Atea diz ter hoje 14 mil associados em todo o país. A organização sem fins lucrativos, com sede em São Paulo, empunha bandeiras como a preservação do Estado laico e o combate à discriminação contra ateus e agnósticos.>
Em outubro do ano passado, a associação processou Bolsonaro e os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), por causa dos gastos feitos com dinheiro público para bancar a viagem de autoridades para a canonização de Irmã Dulce no Vaticano.>
Procurada pela Folha, a EBC disse que não iria se manifestar sobre as contestações à live da Páscoa. A Presidência da República não comentou o caso, mas informou, por meio da AGU (Advocacia-Geral da União), que foi notificada do processo e "apresentará a manifestação dentro do prazo legal".>
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