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Lei das fake news remete a sigilo telefônico com embate sobre privacidade e investigação

Lei das fake news remete a sigilo telefônico com embate sobre privacidade e investigação

Um dos itens do projeto determina aos serviços de mensagens salvar os dados dos responsáveis pelo encaminhamento de mensagens que, segundo critérios do projeto, tenham viralizado

Publicado em 24 de julho de 2020 às 08:15

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Fake News: notícias falsas tornaram-se frequentes na sociedade
Fake News: notícias falsas tornaram-se frequentes na sociedade. (Divulgação)

Um mecanismo previsto no projeto de lei das fake news, aprovado no Senado e agora em discussão na Câmara dos Deputados, levanta um debate quanto aos limites do direito à privacidade e do poder de investigação do Estado.

Há semelhanças, mas também diferenças, entre o que está proposto e o que já acontece com ligações telefônicas.

Um dos itens do projeto determina aos serviços de mensagens, como o WhatsApp, salvar os dados dos responsáveis pelo encaminhamento de mensagens que, segundo critérios do projeto, tenham viralizado.

Muitas das críticas à proposta apontam que tal mecanismo fere a privacidade, pois implicaria, entre outros pontos, na criação de uma banco de dados a partir do qual seria possível saber quem fala com quem. Também se critica o volume de informações que passaria a ser monitorado.

Em contraponto a tal crítica, há quem defenda que a obtenção de tal dado pouco difere do que já acontece com ligações telefônicas, cujo sigilo pode ser quebrado em casos determinados, conforme prevê a Constituição.

?Tal exceção ao sigilo de comunicação consta no artigo 5º da Constituição, que diz: "É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal".

Para além do debate relacionado ao direito à privacidade e à intimidade, críticos da medida apontam que os dados coletados seriam ineficazes para o fim desejado, que seria o de rastrear a origem de determinado conteúdo. Isso porque bastaria por exemplo copiar e colar uma mensagem, ao invés de encaminhá-la, para sair da cadeia de registros.

Há diferenças entre o que seria possível obter por meio da cadeia de encaminhamentos de mensagens em relação às ligações telefônicas.

No caso das ligações telefônicas, um dos dados que pode ser obtido se refere aos registros das ligações realizadas e recebidas. Por meio deles, é possível saber, por exemplo, quem ligou para quem, quando e quanto tempo durou a ligação. Neste caso, não é possível saber nenhuma informação quanto ao conteúdo do que foi falado.

Outro caminho, mais invasivo, é interceptar (grampear) a ligação e descobrir seu conteúdo. Neste caso, a interceptação ocorrerá apenas após a autorização judicial e é sempre da comunicação em fluxo, ou seja, interceptada no momento da própria ligação. Dessa forma, não é possível saber o que foi dito em uma ligação que já aconteceu.

Já no caso do artigo 10 do projeto de lei das fake news, ainda que não se fale em armazenamento de conteúdo, a rede de encaminhamentos se refere a uma mesma mensagem. E este conteúdo será conhecido na investigação, dado que a mensagem será o motivador da solicitação da cadeia de encaminhamento à empresa do serviço de mensagem.

De acordo com o advogado criminalista Ricardo Sidi, como o tema tratado no artigo 10 sempre vai envolver também o conteúdo humano, ele é mais invasivo que a quebra de sigilo telefônico. Ainda assim, ele não é contrário ao armazenamento dos registros de encaminhamento.

"Isso vai trazer uma cadeia condutora de origem dessa mensagem. Vai do seu cunhado, que vem do primo dele, do amigo da faculdade dele. Isso está, tal qual na quebra do sigilo telefônico, revelando quem falou com quem, numa cadeia de várias pessoas. Porém, também se está revelando para a polícia ou para o estado investigador, o conteúdo dessa comunicação", explicou Sidi.

No caso das ligações, ainda que a interceptação permita acesso ao conteúdo das conversas, dentro do período autorizado pelo juiz, ela não é retroativa.

Para a advogada criminalista Paula Lima Hyppolito Oliveira, não há problema no armazenamento de dados previsto no projeto, desde que seja mantida a restrição de acesso a uma prévia autorização judicial.

"A gente sempre vai ter os dois direitos na balança, o direito individual à intimidade e, por outro lado, o interesse público na persecução de um ilícito criminal. E você tem um ente equidistante para decidir que é o Judiciário", afirmou.

Caberia portanto ao Judiciário pesar na balança o interesse público em contraposição ao direito à privacidade e à intimidade.?

O registro de encaminhamento das mensagens proposto do projeto de lei foi alvo de críticas dos relatores especiais para a proteção da liberdade de expressão das Nações Unidas (David Kaye) e da OEA (Edison Lanza), em documento enviado ao governo brasileiro.

"Ela poderia permitir o monitoramento de pessoas que fazem parte de correntes de troca de informações, tais como jornalistas, pesquisadores, líderes políticos e sociais e outras pessoas que compartilham informações com propósitos legítimos", consta no documento.

Em entrevista à reportagem, Kaye afirmou que, "se as pessoas pensam que o fato de compartilharem informações as tornará rastreáveis, o direito de privacidade já foi afetado".

O disposto no artigo 10 do projeto, segundo a professora de direito processual penal da USP Marta Saad, não traz um dado muito relevante, do ponto de vista de investigação, e ao mesmo tempo traz uma sociedade de vigilância, sobre quem fala com quem e o que compartilha.

"Isso [saber quem ligou para quem] já é uma restrição da privacidade, mas o que o projeto está fazendo é subir essa restrição para algo muito maior", afirmou.

Na visão do professor Antonio Ramires Santoro, professor de direito processual penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o dispositivo não é mais invasivo que outras formas já previstas na legislação brasileira.

"O que eu acredito sinceramente é que isso não é efetivamente algo em que esteja se inovando, o que eu acho é que se está atribuindo responsabilidade [de guarda de registro] aos serviços de mensagem que eles [hoje] não têm."

Para ele, entretanto, o projeto deveria trazer requisitos legais mais rígidos para acesso a esses dados. "Poderia estabelecer que não cabe quando estiver investigando crimes que não tenham relevância, crimes punidos com menos de quatro anos", exemplificou.

Já para José Antonio Milagre, perito especialista em crimes cibernéticos, ainda que possa implicar em um processo de investigação mais demorado, as previsões do Marco Civil da Internet já são suficientes.

"Sei a importância de ter a contribuição dos aplicativos para apurar a autoria de crimes cibernéticos, mesmo assim eu não desejo uma lei dessa natureza. Os malefícios que ela pode causar de longe superam eventual benefício no combate a fake news", disse.

ENTENDA PONTOS DO PROJETO

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    O projeto de lei busca trazer formas de rastrear a origem de mensagens que tenham viralizado em serviços de mensagens privadas, como o WhatsApp.

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    Não. O projeto de lei determina o armazenamento, por três meses, de registros das mensagens que tenham sido encaminhadas para grupos e listas por mais de cinco usuários e que tenham atingido mais de mil usuários, o que configuraria viralização.

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No entanto, para que este dado exista, os serviços de mensagem terão que criar formas de rastrear todas as mensagens, mesmo aquelas enviadas de pessoa para pessoa, sem envolver grupos, pois não há como prever se determinada mensagem virá ou não a viralizar. O projeto determina a destruição desses dados após 15 dias, caso não tenha chegado ao índice de viralização.

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    Por meio de ordem judicial para investigação criminal.

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    A principal crítica à medida é que ela seria um risco à privacidade, pois faria com que serviços como o WhatsApp guardassem mais dados das pessoas, correndo o risco de que esses dados sejam vazados ou instrumentalizados.

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    Segundo a empresa, esse dado não existe. Em abril, o WhatsApp passou a limitar o alcance do que, de acordo com eles, seriam mensagens encaminhadas muitas vezes. Segundo a empresa, o contador dos encaminhamentos não registra quantos usuários receberam uma mensagem, mas sim quantas vezes ela foi encaminhada, e que o próprio WhatsApp não tem acesso a essa contagem, pois ela é protegida pela criptografia.

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    Não exatamente, porque a ordem judicial para obter a rede de encaminhamentos estaria atrelada a uma mensagem determinada e que seria conhecida pelo juiz e pelos responsáveis pela investigação.

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Quando se fala de quebra de sigilo telefônico, a operadora de telefonia fornece os dados de para quais números uma pessoa ligou e também de quem recebeu ligações. Neste caso, não há acesso ao conteúdo das ligações.

Outro caminho, mais invasivo, é interceptar (grampear) a ligação e descobrir seu conteúdo. Neste caso, a interceptação ocorrerá apenas após a autorização judicial e é sempre da comunicação em fluxo, ou seja, interceptada no momento da própria ligação. Dessa forma, não é possível saber o que foi dito em uma ligação que já aconteceu.

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