Publicado em 21 de agosto de 2022 às 13:42
BRASÍLIA, DF - Em dezembro de 2020, Brasília abrigou duas ações contraditórias no manejo das verbas públicas. No mesmo momento em que o Executivo deixava de pagar a primeira leva do Auxílio Emergencial criado na pandemia da Covid-19 em nome do equilíbrio das contas públicas, a Câmara dos Deputados patrocinava um gasto recorde da cota distribuída aos parlamentares para custeio de suas atividades legislativas. >
Em um mês de Congresso esvaziado, com apenas três semanas de trabalho formal e ainda afetado pelo distanciamento social, deputados federais ganharam reembolso de R$ 26 milhões, 95% a mais do que a média verificada nos 11 meses anteriores (R$ 13,4 milhões), um recorde.>
Mais da metade do total do dinheiro foi usado sob a justificativa de "divulgação da atividade parlamentar" e contratação de consultorias e pesquisas, mostram os dados coletados e organizados pela Folha por meio do site de transparência da Câmara.>
A explosão dos gastos coincidiu com a chegada do prazo limite para o desembolso, já que todo o dinheiro reservado para a cota de 2020 que não fosse usado até 31 de dezembro daquele ano voltaria para os cofres públicos.>
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Havia um estoque considerável de dinheiro economizado, tendo em vista que em vários meses do ano não foi necessário gasto semanal com passagens aéreas de ida e volta dos deputados a Brasília –as sessões foram realizadas de forma virtual– nem com combustível, já que as viagens nos estados também praticamente cessaram no período mais crítico da pandemia.>
O gasto nominal da cota em dezembro de 2020 foi o segundo maior da história da CEAP (Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar), instituída em 2009.>
A cota tem o objetivo de reembolsar os parlamentares por gastos com passagens aéreas, alimentação, combustível, aluguel de escritório, propaganda (chamada de "divulgação do mandato"), consultoria, entre outros.>
Varia de R$ 30,8 mil a R$ 45,6 mil, a depender do estado. O dinheiro não usado acumula para os meses seguintes, até dezembro, prazo limite para o uso.>
Vinicius Gurgel (PL-AP), por exemplo, não havia gasto mais de R$ 40 mil da cota em nenhum mês até novembro. Em dezembro, desembolsou R$ 142 mil, sendo R$ 120 mil para um mesmo escritório de advocacia, Aquino Albuquerque e Rocha, pelo serviço de "consultoria, pesquisa e trabalhos técnicos".>
O escritório representa o deputado em processos na Justiça, desde antes de 2020 até depois, inclusive no STF.>
Pelos serviços, foram emitidas três notas fiscais, com números sequenciais, sob a justificativa de consultoria para projetos legislativos.>
O filho de um dos advogados do escritório trabalha, desde o segundo semestre de 2021, no gabinete de Gurgel.>
Durante seu mandato, o deputado não contratou o escritório nenhuma outra vez e jamais direcionou mais que R$ 50 mil em um mês pelo mesmo serviço em outra ocasião.>
Procurado, ele afirmou que a sequência nas notas se dá em razão de terem sido três serviços diferentes, mas não respondeu sobre qual teria sido o resultado da consultoria contratada.>
"O trabalho feito consta no controle interno da Câmara e no TCU. O escritório é qualificado e o trabalho foi relativo a me auxiliar na minha atuação parlamentar", afirmou, acrescentando que a contratação do filho do advogado para o seu gabinete cumpriu todos os requisitos da Câmara.>
Uma das parlamentares que mais pediram reembolso em dezembro (R$ 242 mil) foi Marília Arraes (Solidariedade-PE), que em 2020 disputou e perdeu a Prefeitura do Recife pelo PT.>
A quase totalidade dos recursos, R$ 228 mil, foi usada na rubrica de "divulgação da atividade parlamentar", que funciona como propaganda dos parlamentares custeada pelos cofres públicos. De acordo com as notas fiscais, foram produzidas e veiculadas em TVs, rádios e internet peças relativas à atividade da parlamentar em 2020.>
A assessoria da deputada disse que ela continuou exercendo normalmente o seu mandato, de forma remota, mesmo no período de campanha, e nega que os pagamentos de dezembro tenham relação com compromissos eleitorais.>
"Ao contrário de outros parlamentares, a deputada não tirou licença para se dedicar à campanha, tendo uma atividade institucional das mais relevantes, com a apresentação de 215 propostas legislativas, entre as quais 77 projetos de lei, a presença em 95 sessões e a participação em 390 votações nominais em plenário.">
A deputada Christiane Yared (PP-PR) também teve um gasto fora da média com a divulgação parlamentar em dezembro daquele ano –R$ 100 mil para a produção de 100 mil revistas.>
Em 2020, Yared foi candidata a prefeita de Curitiba, mas não se elegeu. Seu maior gasto na campanha daquele ano foi com a mesma gráfica, R$ 640 mil. A deputada não quis se manifestar.>
O tucano Beto Pereira (MS) usou em dezembro quase um quarto de sua cota parlamentar do ano inteiro.>
Do total, R$ 67 mil foram gastos na divulgação da atividade parlamentar, sendo R$ 53 mil à empresa RPR Criações Gráficas para impressão de 250 mil informativos em tamanho A3, impressos a cores e em papel couchê. O quantitativo representa o triplo da votação obtida pelo parlamentar em 2018 (80.500 votos).>
Pereira disse que "a impressão de informativos é diretamente proporcional ao volume de trabalho e resultados da atividade política no Parlamento" e que os valores são legais e passam por rígida e transparente fiscalização.>
Diferentemente do que diz o parlamentar, porém, a Câmara se restringe a conferir se a documentação de gastos apresentada pelos deputados se enquadra nas regras de reembolso. Não há qualquer tipo de fiscalização, nem por amostragem.>
O deputado Fabio Reis (MDB-SE) teve padrão de uso da cota semelhante ao do colega de Mato Grosso do Sul. Em dezembro, seu gasto total foi de R$ 102 mil contra média de R$ 26 mil nos meses anteriores.>
O maior montante foi desembolsado com divulgação parlamentar na gráfica Editora J. Andrade Ltda, a mesma utilizada na sua campanha à Prefeitura de Lagarto em 2020 –ele não foi eleito. A Folha procurou o parlamentar, mas não obteve resposta.>
O bolsonarista Éder Mauro (PL-PA), que já havia usado verba da cota para publicar outdoors com propaganda de Jair Bolsonaro, gastou R$ 166 mil em dezembro de 2020, sendo R$ 40,5 mil novamente com outdoors em Belém e cidades do interior. Em um deles, aparece sua foto e a legenda em que afirma que destinou R$ 846 milhões ao Pará em emendas ao Orçamento.>
Outros R$ 60 mil foram gastos em 80 mil panfletos de divulgação de suas atividades parlamentares.>
"Nosso estado é o segundo maior em extensão territorial, em alguns lugares ainda é remoto o acesso às redes e mídias tradicionais. Assim, nosso mandato opta pelo outdoor, em sua maioria, porque a peça publicitária chega aos rincões do Estado", disse Éder Mauro, por meio de sua assessoria.>
Benedita da Silva (PT), que também foi candidata a prefeita em 2020, gastou R$ 206 mil da cota parlamentar em dezembro de 2020. Entre outros, R$ 88 mil para a produção de um vídeo para as redes sociais e um spot de 60 segundo para rádios.>
Por meio de sua assessoria, a parlamentar disse que suas atividades foram maiores em 2020, em razão da discussão e elaboração de propostas para uma população "entregue à própria sorte, desempregada e passando necessidades básicas por conta de um governo federal despreparado e insensível às dores da população.">
E destacou a autoria do projeto de lei que resultou na aprovação de uma política nacional permanente para fomento à cultura, que passou a ser chamada de nova lei Aldir Blanc.>
"Esse é apenas um exemplo de dezenas de outros projetos e ações que contaram com a autoria, coautoria ou defesa da parlamentar.">
O deputado Subtenente Gonzaga (PSD-MG) gastou em dezembro de 2020 R$ 196 mil para confecção de 100 mil exemplares de um jornal de 16 páginas com suas atividades parlamentares e o envio pelos correios para sua base eleitoral.>
"Por razão da pandemia, não houve viagens, a gente conseguiu economizar. Aí no final do ano, eu tinha duas opções, realmente. Sentamos e discutimos aqui: 'Vamos devolver, que é um caminho natural também, ou vamos fazer o informativo, que também é um caminho natural?'", disse.>
Gonzaga afirmou ter optado pelo informativo por considerar que o jornal impresso ainda é uma forma mais efetiva de fazer uma comunicação mais aprofundada com seu eleitor.>
"Não foi uma coisa diversa, não fiz um informativo e joguei para cima. Mandamos para uma base que é nossa base da categoria de policiais e bombeiros militares e pensionistas aqui em Minas Gerais. A explicação técnica e legal, é ok. A opção política de fazer ou não fazer, é difícil buscar a concordância.">
Em dezembro de 2020, o deputado Marx Beltrão (PP-AL) pagou R$ 50 mil à São Judas Tadeu Pesquisas para consultar, em cidades do interior de seu estado, as demandas da população com vistas a "identificar as necessidades para indicação das emendas" parlamentares. Dentre os municípios está Coruripe, onde ele foi prefeito entre 2005 e 2013.>
Naquele mesmo ano, seu irmão, Maykon Beltrão, foi candidato à prefeitura da cidade e contratou a São Judas Tadeu. Beltrão não quis se manifestar.>
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