Publicado em 13 de julho de 2020 às 14:19
Em praticamente todas as regiões do mundo mais duramente afetadas pelo coronavírus e que retomaram as atividades há queda sustentada no número de mortes e infecções.>
A tendência é a mesma na Europa e nos estados brasileiros e norte-americanos mais contaminados. Nos que vinham sendo poupados, os casos estão subindo, elevando a média geral tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos.>
Na Europa, onde a epidemia chegou antes, ela está em declínio, apesar de muitos países terem voltado a funcionar quase normalmente.>
Nos EUA, cidades mais afetadas e que tiveram ondas de protestos de rua contra o racismo após a morte de George Floyd, em 25 de maio, também não tiveram novos surtos.>
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Já estados como Califórnia e Texas, alheios à irrupção inicial, são os novos focos.>
No Brasil, cidades como São Paulo, Manaus, Rio e Recife, já fortemente afetadas, estão reabrindo até agora sem repiques. Mas a epidemia se alastra no interior, assim como nas regiões Sul e Centro Oeste, até então poupadas.>
Epidemiologistas e novos estudos sugerem que a chamada imunidade coletiva necessária para conter a expansão da Covid-19 pode ter sido superestimada ou estar sendo calculada de forma imprecisa.>
Isso explicaria a não ocorrência de uma segunda onda de infecções até agora. Mesmo que, nos locais inicialmente mais afetados e reabertos, menos de 20% da população tenha desenvolvido anticorpos para o novo coronavírus.>
Há alguns meses, estimava-se que até 70% das pessoas deveriam contrair o vírus antes que ele não encontrasse hospedeiros para se propagar.>
1) Muito mais pessoas pegaram o vírus e desenvolveram anticorpos que diminuem com o tempo, resultando depois em testes negativos; ou elas se curaram mesmo sem a criação de anticorpos;>
2) O principal vetor de transmissão do vírus seriam os adultos jovens, que circulam mais pelas cidades, sobretudo em transportes coletivos.>
Tome-se o caso de Manaus, considerada por epidemiologistas como um campo de provas para a livre evolução da epidemia devido ao baixíssimo isolamento social que resultou no colapso dos sistemas de saúde e funerário.>
Segundo a Epicovid19, maior mapeamento do coronavírus do país conduzindo pela Universidade Federal de Pelotas, o máximo de prevalência de anticorpos na população da capital do Amazonas foi encontrado entre os dias 4 e 7 de junho: 14,6%.>
Na rodada seguinte de testes, entre 21 e 24 de junho, a pesquisa encontrou só 8% dos manauaras com anticorpos.>
Junho foi o mês em que os sepultamentos e cremações em Manaus se reaproximaram das taxas pré epidemia; e julho vem sendo marcado pela desmobilização de parte do aparato para a Covid-19.>
Na cidade de São Paulo, com mais isolamento e menos mortes que Manaus, proporcionalmente, o máximo de prevalência de anticorpos encontrada na população foi de 3,3%, entre 14 e 21 de maio.>
Mesmo assim, e apesar da reabertura gradual, a capital registra queda sustentada de novos casos, a ponto de oferecer leitos a cidades onde a epidemia agora avança.>
Segundo imunologistas, é provável que o Sars-CoV-2 possa estar sendo combatido em duas frentes: pelos linfócitos (células) B, que produzem anticorpos, na resposta imune denominada humoral; e pelos linfócitos T, que não fazem isso, mas que também combatem o vírus eliminando células infectadas --nesse caso, por resposta citotóxica.>
Como a ação dos linfócitos T não produz anticorpos, muitas pessoas teriam defesa contra o vírus sem que a maioria dos testes hoje aplicados (não celulares) detecte isso.>
Outro ponto é que os anticorpos produzidos pela ação dos linfócitos B podem diminuir com o tempo, mas sem que se perca a imunidade.>
Isso explicaria a redução da prevalência, com o tempo, de anticorpos detectados na população nos testes em Manaus e em outras cidades monitoradas pela Epicovid19 --e sem que haja novos surtos.>
Para Julio Croda, infectologista da Fiocruz, a imunização contra o coronavírus pode estar se dando de forma "cruzada": pela suscetibilidade individual (com linfócitos B e T) e por outros fatores genéticos combinados às políticas de distanciamento social e o uso de máscaras.>
"Sem o distanciamento e a máscara, o percentual de infectados e mortos na população teria de ser muito maior para chegarmos à imunidade comunitária", afirma.>
Por discordar do presidente Jair Bolsonaro na questão do isolamento social, Croda deixou a direção do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde no final de março.>
Para Natalia Pasternak, doutora em microbiologia pela USP e presidente do Instituto Questão de Ciência, o ataque ao vírus pelos dois tipos de linfócitos (B e T) e o fato de os anticorpos poderem cair abaixo do detectável, sem prejudicar a imunização, tornam difícil aferir o tamanho da população ainda suscetível ao vírus.>
"Ela talvez já não seja tão grande, mas não sabemos. O que não podemos é tratar isso de forma que dê a impressão de um liberou geral [onde o vírus já fez muito estrago].">
Pasternak afirma que a imunidade total só pode ser obtida com um número muito elevado de mortes ou com uma vacina --as principais em elaboração hoje tentam emular os dois caminhos (humoral e citotóxico) para a destruição do novo coronavírus.>
Para Daniel Soranz, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, o número elevado de mortes em algumas cidades do Brasil ajudaria a explicar a inexistência de uma segunda onda de infecções, apesar da reabertura desses locais.>
"Isso ocorre às custas de muitas mortes. Pois se fossemos desenhar um cenário ruim, não poderíamos criar nada pior do que o que vimos em algumas cidades do Brasil, sobretudo nas comunidades mais pobres, como as daqui do Rio", afirma Soranz.>
Agora, sem nenhuma fila e com cerca de mil pacientes em leitos de UTI no Sistema Único de Saúde, em menos de 20 dias a capital fluminense poderá zerar as internações --a um ritmo de 50 saídas ao dia, por alta hospitalar ou morte.>
Esper Kallás, infectologista e professor da USP, suspeita que tenham sido justamente os moradores das comunidades menos ricas, sobretudo os adultos jovens, os maiores responsáveis pela disseminação do coronavírus e da obtenção de uma imunidade comunitária maior nas cidades mais afetadas até agora.>
Mesmo que não detectada totalmente nas pesquisas de prevalência imunológica, como as da Universidade Federal de Pelotas, essa imunidade maior impediria agora uma segunda onda de infecções.>
"Os adultos jovens, que se locomovem muito mais em transporte público, e que não apresentam sintomas importantes, parecem ter sido os grandes disseminadores do vírus e os responsáveis, neste segundo momento, pela contenção de sua propagação.">
Kallás afirma que, no caso da gripe comum, a imunidade comunitária é atingida com 33% a 44% da população infectada. Em se tratando da Covid-19, a taxa necessária para que isso ainda é incerta, mas ele suspeita que seja menor.>
Sergio Cimerman, coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), alerta, porém, para os cuidados que devem ser tomados onde as atividades vem sendo retomadas.>
"Estamos longe de qualquer sinal de uma segunda onda, apesar da flexibilização em muitos locais. O que é certo é que o risco aumenta quando existem aglomerações.">
Para a professora e infectologista Raquel Stucchi, da Unicamp, a dinâmica da pandemia do novo coronavírus tem sido um aprendizado --e ele ainda não teria terminado.>
"O Brasil foi o único país que iniciou a flexibilização na subida da curva. Quem fez isso próximo do platô, parece ainda estar em situação adequada. Já o interior, que tentou flexibilizar antes, acabou se dando muito mal", afirma.>
Agora, com a epidemia avançando mais no Sul, no Centro Oeste e no interior, esse conjunto de decisões estaduais e municipais, combinado ao enorme grau de desorganização do governo federal, ainda provoca cerca de 40 mil infecções e mais de 1.000 mortes no Brasil todos os dias.>
Diante da interiorização da epidemia e da prevalência de infecções pela Covid-19 nas áreas mais pobres, o Instituto Estáter e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) lançam nesta segunda (13) o Projeto Alert(ar), uma campanha nacional para estimular o uso de oxímetros no combate precoce ao coronavírus.>
A iniciativa tem a parceria de entidades médicas, empresas e lideranças comunitárias, além de prefeituras.>
A campanha surge da constatação de que as chances de recuperação são muito maiores quando os doentes são tratados antes de terem os pulmões severamente comprometidos pela Covid-19 --daí a necessidade de medir frequentemente, com oxímetros, a taxa de oxigênio no sangue.>
Apesar de não sentirem dificuldade para respirar, muitos infectados apresentam queda perigosa do nível de oxigenação. No jargão médico, a chamada hipóxia silenciosa pode tornar irreversível, e em pouco tempo, o quadro pulmonar.>
O presidente do Instituto Estáter, Percio de Souza, considera fundamental ampliar a conscientização e o uso de oxímetros para tentar diminuir a taxa de óbitos no país.>
"A interiorização da epidemia torna mais crítica a necessidade do acompanhamento da oxigenação e o tratamento inicial, especialmente para os mais vulneráveis e idosos, que não têm meios de correr sozinhos aos locais onde há leitos de UTI", diz Souza.>
No Brasil, só 6% das cidades têm leitos de UTI; e embora as 27 capitais agrupem menos de um quarto da população, elas detêm quase a metade das vagas.>
Já os leitos no interior estão concentrados em cerca de 300 municípios, deixando quase 100 milhões de brasileiros longe das UTIs. Com as distâncias e sem atendimento inicial, há cada vez mais mortes nas pequenas cidades.>
O Projeto Alert(ar) prevê conscientizar a população sobre o uso frequente do oxímetro em casos suspeitos e pretende disponibilizar milhares de aparelhos no país a pessoas treinadas que possam monitor conjuntos populacionais.>
Basicamente, a infecção pelo coronavírus se dá na sua ligação às enzimas conversoras da angiotensina 2 (ECA2). Abundantes no bulbo carotídeo, esse órgão responsável por alertar o cérebro para que o doente respire com força quando o ar falta entra em pane --e o indivíduo não percebe a queda de oxigênio em seu organismo.>
A mucosa nasal também tem muitos receptores das enzimas ECA2 --e a mesma pane explicaria a perda de olfato relatada por muitos infectados.>
Embora haja queda de oxigênio, na infecção pelo coronavírus os doentes também não retêm gás carbônico, e não sentem muita falta de ar.>
Os dados de algumas cidades monitoradas pelo projeto revelam que cerca de 40% dos doentes que morrem o fazem em casa ou nas primeiras 24 horas de internação --e que outros 40% chegam direto às UTIs, sem que tenham passado por nenhum outro tipo de atendimento.>
Já entre os pacientes atendidos em enfermarias (com oxigênio, corticoides e anticoagulantes), apenas 20% acabam precisando de UTI. Na maioria das vezes, não necessitam sequer de ventilação mecânica; só de oxigênio de alto fluxo --e ficam internados por um tempo bem menor.>
Segundo Clóvis Arns da Cunha, presidente da SBI, a falta de oxigenação no sangue começa por volta do sétimo dia. Daí a necessidade de monitorar casos suspeitos com os oxímetros e encaminhá-los a unidades de saúde sempre que a taxa de oxigenação cair abaixo de 95%.>
"A iniciativa vai nessa direção, de alerta e de conscientização", afirma.>
O Instituto Estáter e a SBI terão o apoio técnico da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), que representa médicos atuando em 47,7 mil equipes de atenção básica, e da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib).>
A Central Única das Favelas (Cufa), com representação em vários estados, dará capilaridade à divulgação, e empresas como Boticário, Embraer, Klabin, Gol, Grupo Ultra e o banco Voiter entrarão com apoio institucional.>
Segundo Denize Ornelas, diretora da SBMFC, uma das maiores falhas dos gestores da saúde pública no Brasil nessa epidemia foi não ter disponibilizado oxímetros para as esquipes de atenção básica.>
Com a exceção das cidades maiores, poucas equipes têm o aparelho --que pode ser comprado pela internet ao preço médio de R$ 200.>
Baseando-se nas curvas de infecções no Brasil e em outros países, Percio de Souza, do Estáter, também não enxerga até agora indícios de uma segunda onda que possa interromper novamente a atividade econômica.>
"Mas isso não justifica abandonarmos as políticas públicas para conscientizar a população e buscar meios técnicos para combater essa fase da epidemia. É preciso evitar que medidas tomadas sem embasamento acabem prejudicando ainda mais a sociedade pela via econômica.">
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