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Antes de Lula, só Getúlio conseguiu voltar à Presidência

Antes de Lula, só Getúlio conseguiu voltar à Presidência

Lula chegou três vezes à Presidência, sempre por eleições diretas. Getúlio foi escolhido pelo voto popular para essa função apenas uma vez; antes, havia alcançado o poder por golpe ou pleito indireto

Publicado em 31 de dezembro de 2022 às 14:07

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No dia 29 de outubro de 1945, Getúlio Vargas foi deposto do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, numa ação conduzida pelo general Góis Monteiro. Para alguns críticos do líder gaúcho, começava naquele momento o declínio político do homem que havia governado o país por 15 anos ininterruptos, 8 deles num regime abertamente autoritário, o Estado Novo.

Apeado do poder, Getúlio pegou um avião do Rio para a sua cidade natal, São Borja (RS). Durante o voo, seu sobrinho Serafim Dornelles quis saber o que o tio faria dali para frente.

"Sou uma peça que foi movida da posição que ocupava, e eles pensam que vou permanecer onde colocaram", afirmou. "É o grande erro deles. Não sabem que vamos começar novo jogo e com todas as pedras de volta ao tabuleiro."

Getúlio Vargas entrega bandeira a João Punaro Bley, interventor do Espírito Santo, em cerimônia no Catete em 1937
Getúlio Vargas entrega bandeira a João Punaro Bley, interventor do Espírito Santo, em cerimônia no Catete em 1937. (Arquivo FGV)

Cinco anos depois, mostrou que estava certo. Foi eleito presidente pelo PTB com 47,7% dos votos, ante o brigadeiro Eduardo Gomes (UDN), com 29,7%, e Cristiano Machado (PSD), com 21,5%. Não havia segundo turno nesse período.

Pela primeira vez na história da República brasileira, alguém reconquistava o cargo máximo do país depois de um hiato longe do Poder Executivo. O feito só se repete agora, com Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que volta ao Palácio do Planalto depois de ter governado de 2003 a 2010.

Os 12 anos de Lula distantes da Presidência foram bastante atribulados, para dizer o mínimo.

Viu sua sucessora, Dilma Rousseff (PT), governar e sofrer o impeachment. Ficou preso por 580 dias numa cela da Polícia Federal em Curitiba, centro da Operação Lava Jato, e recuperou seus direitos políticos. Acompanhou a ascensão da direita radical representada por Jair Bolsonaro (PL).

O interregno de Getúlio foi bem mais curto e certamente menos instável. Mas não exatamente tranquilo.

Instalado em sua fazenda em São Borja, ele não demorou para demonstrar força política. Numa fase inicial, foram duas as ocasiões em que sua popularidade e sua influência se revelaram incontestáveis.

Primeiro, a vitória do general Eurico Gaspar Dutra em dezembro de 1945. Após a queda de Getúlio, a Presidência passou às mãos de José Linhares, do STF (Supremo Tribunal Federal). Enquanto isso, avançava a corrida eleitoral, que contrapunha Dutra (PSD), ministro da Guerra durante o Estado Novo, e o brigadeiro Eduardo Gomes (UDN).

Getúlio tinha ojeriza a Dutra, um dos responsáveis pela sua deposição, mas decidiu se colocar ao lado dele na última hora porque o outro cenário, vitória da UDN, implicaria um desgaste muito maior do gaúcho.

"Era o pragmatismo extremo do Getúlio, que apoiou o homem que, ao lado do Góis Monteiro, havia derrubado ele da Presidência. E esse apoio foi fundamental para a vitória do Dutra", diz o jornalista Lira Neto, autor da trilogia "Getúlio", a principal biografia do líder gaúcho.

Segundo, o desempenho de Getúlio nas urnas, também em dezembro de 1945.

A legislação naquele período permitia que políticos concorressem em mais de um estado e por mais de um partido. Pelo PTB, lançou-se na disputa para senador no Rio Grande do Sul e para deputado constituinte em seis estados: Bahia, Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Distrito Federal. Pelo PSD, foi candidato a senador e a deputado no estado gaúcho.

Ganhou todas as cadeiras e escolheu o Senado pelo PTB gaúcho.

"Os presidentes da Primeira República [1889-1930] circulavam pelos grupos da elite e se entendiam com eles. Só falavam para um público mais amplo por ocasião das eleições. Getúlio não, ele havia sido o primeiro presidente que a população reconhecia como tal. E, claro, isso ocorria também porque havia toda uma propaganda pró-Vargas", afirma Angela de Castro Gomes, professora titular aposentada de história do Brasil na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de livros como "A Invenção do Trabalhismo".

Getúlio foi a poucas sessões no Senado, episódios em que suscitava reações calorosas favoráveis e contrárias de seus colegas de plenário e do público que o acompanhava.

Dedicava a maior parte do seu tempo às articulações em São Borja com a pretensão de voltar ao Catete, agora escolhido pelo voto popular. Nesse sentido, as ações nos bastidores da sua filha Alzira foram essenciais.

"Alzira desfrutava de uma confiança irrestrita do pai e, nesse momento, ela expressava uma maturidade política como negociadora que a colocou no centro da cena", conta Lira.

A sintonia entre eles prevalecia, mas Alzira sabia ser dura com Getúlio quando havia uma discordância. Ela se opôs, por exemplo, à aproximação do pai com Adhemar de Barros, nome de popularidade crescente na segunda metade dos anos 1940.

A fama de corrupto do governador paulista se consolidava e gerava incômodo em Alzira, mas Getúlio estava mesmo preocupado com os votos que poderia obter com a aliança.

Eles se encontraram em São Borja e fecharam um pacto: na disputa nacional em 1950, Adhemar apoiaria Getúlio, que se comprometia a sair em defesa do paulista para a sua sucessão.

Diante da ira da filha, Getúlio disse que não havia assinado documento algum. O acordo tinha a rubrica de líderes do getulista PTB e do PSP de Adhemar, mas não o endosso por escrito do ex-presidente.

Mais tarde, Alzira reconheceu que fazia sentido sacramentar o acordo. "Adhemar era uma liderança populista que poderia fazer sombra ao Getúlio, e com muita força. A aliança foi, sem dúvida, fundamental para os planos dele de voltar à Presidência", avalia Lira.

(Com o desfecho trágico da Presidência de Getúlio, que se matou em agosto de 1954, a história do país ganhou outros rumos e relegou para o terreno das especulações a hipótese de apoio do líder gaúcho a Adhemar. O político paulista se candidatou à Presidência em 1955, mas foi derrotado por Juscelino Kubitschek).

Outra costura de Getúlio visava impedir que duas das siglas mais importantes da época, a UDN e o PSD, se unissem contra ele. A artimanha se revelou, entre outros momentos, numa entrevista concedida ao jornalista Samuel Wainer, quando elogiou enfaticamente Eduardo Gomes, cuja candidatura era cogitada pela UDN e acabou sendo oficializada posteriormente.

Ao insistir com Gomes, a UDN se afastou do PSD, que lançou Cristiano Machado.

Segundo o biógrafo, "há dois movimentos muito interessantes do ponto de vista da estratégia política. Um é trazer para junto de si um potencial adversário, difícil de ser batido nas urnas, caso do Adhemar. De outro lado, desconstruir qualquer possibilidade de aliança de outras forças, que pudessem vir a ser hostis a ele".

MANUTENÇÃO DA LIDERANÇA

Nesse período longe do Palácio do Catete, de acordo com Angela de Castro Gomes, Getúlio soube "manter sob sua liderança uma grande rede política, o que não é pouca coisa".

Ele acertou também, na visão da professora, no timing para se manifestar publicamente contra Dutra, que conduzia um "governo repressivo em relação à classe trabalhadora".

O PERIGO DAS COMPARAÇÕES

Com os mais recentes episódios da trajetória política de Lula, é tentador compará-lo a Getúlio, ainda mais se considerarmos que o petista sempre tratou o pai do antigo PTB como uma inspiração política (aqui vale um adendo: Lula chegou três vezes à Presidência, sempre por eleições diretas. Getúlio foi escolhido pelo voto popular para essa função apenas uma vez; antes, havia alcançado o poder por golpe ou pleito indireto).

Lira, porém, recomenda cuidado com aproximações desse tipo.

"Qualquer tentativa de estabelecer pontos de convergência pode cair no perigo do anacronismo, de comparar contextos históricos desiguais. Não podemos esquecer que estávamos vivendo um período da Guerra Fria nos anos 1950, quando Getúlio voltou à Presidência."

Feita a ponderação, o jornalista observa: "Muitos preconizaram que Lula estava morto politicamente, principalmente depois da prisão. Tanto ele quanto o Getúlio mostraram que conseguiram manter um recall, vamos dizer assim, na memória popular, exatamente pelo fato de terem construído ao longo dos seus respectivos períodos na Presidência uma empatia muito grande com a maioria do eleitorado".

Outros pontos de contato podem se tornar mais evidentes nos próximos meses. "Existe um cenário de oposição que promete ser radicalizada, como o Getúlio enfrentou. E ainda questões delicadas ligadas ao universo militar", diz Lira.

Angela de Castro Gomes também se preocupa com os possíveis embates que virão pela frente. "Lula volta ao poder com força e popularidade, mas também com uma oposição jamais vista no Brasil."

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