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Vitória, uma cidade de costas para sua cultura e seu passado

Situação do Centro Cultural Carmélia Maria de Souza não é um caso isolado. Ao contrário, ela é o reflexo da ilusão de que o progresso nos traria felicidade, que nos faria sentir bem em nossa cidade

  • Ricardo Sá
Publicado em 06/08/2020 às 11h00
Atualizado em 06/08/2020 às 11h00
Teatro Carmélia vai ser usado para armazenamento de sacos de café.
Teatro Carmélia vai ser usado para armazenamento de sacos de café. Crédito: Vitor Jubini

Vitória no início do século XX era uma cidade linda. Sua arquitetura se integrava de forma tão delicada à geografia que parecia querer fazer parte dela, tornar-se invisível. Naquela época a baía recebia canoas que desciam os vários rios navegáveis, trazendo produtos de todas as partes. Olhando as fotos da época a sensação era de uma cidade harmônica, poética, como reconheceram alguns escritores daquele tempo.

Aos poucos a cidade foi cedendo a uma construída vocação industrial. A instalação do porto na baia foi o divisor de águas . A circulação das canoas foi substituída pelo movimento dos rebocadores puxando grandes navios. O acesso à baia foi sendo limitado por muros, a população foi sendo obrigada a se distanciar.

O mesmo distanciamento foi sendo imposto ao Centro de Vitória. Vieram os prédios, que sem piedade derrubaram o casario, derrubaram a poesia. Trocaram os bondes pelos carros, passaram asfalto onde antes era paralelepípedo, destruíram teatros, fecharam as minas de água que desciam da floresta, sepultaram a história, mas não a memória.

E seguiram nos dizendo que nossa vocação era portuária, como se a cultura de um lugar tivesse sempre que se moldar aos interesses do capital. Em nome de um projeto de desenvolvimento destroem o passado, a poesia, a arte e tudo aquilo que se opor à ideia de lucro e riqueza.

E assim seguiu-se por muitas décadas, cada nova gestão municipal investindo mais em ampliar, aterrar, expandir, sem perceber que sua história estava sendo reduzida a fotografias antigas, a lembranças de moradores idosos e a maioria das vezes, expulsos para as periferias, a construções históricas sem projeto de revitalização. Até que nos deparamos com a feiúra, com a falta de poesia, com o vazio.

situação do Centro Cultural Carmélia Maria de Souza não está isolada deste contexto. Ao contrário, ela é o reflexo da ilusão de que o progresso nos traria felicidade, que nos faria sentir bem em nossa cidade.

Mas a história é impiedosa com a ignorância. "Quem planta colhe", diz o dito popular. Cada gestor público que aceitou a vocação portuária e esqueceu da vocação humanística teve sua parcela de contribuição para o que estamos enfrentando hoje. Nossa Lei Rubem Braga há 4 anos sem lançar edital é uma das responsáveis pelo esvaziamento das atividades culturais na cidade, justamente estas que ocupavam teatros, galerias, salas de cinema, parques, praças, etc.

Ao mesmo tempo a atividade cultural precisa se reinventar para sobreviver aos tempos áridos. É preciso pensar caminhos de autogestão de espaços, estabelecer parcerias com as comunidades e entidades, cobrar mais investimento e políticas; seja dos governos, seja do próprio capital.

Por que o Centro Cultural Carmélia Maria de Souza é apenas um dos espaços culturais em situação de calamidade. Antes dele assistimos ao fechamento do Sesc Glória, ao esquecimento do Majestick, ao incêndio do Mercado da Capixaba, ao abandono do Saldanha da Gama, do Castelinho da Jerönimo Monteiro, etc etc etc...

Na contramão disso tudo, a construção do Cais da Artes pelo governo do Estado, que já consumiu uma quantidade de recursos que seria suficiente para recuperar todos os equipamentos culturais citados acima.

O momento agora é de resistir à substituição do sorriso da plateia de teatro pelo silêncio dos armazéns de café. Resistir ao silenciamento da arte. Um momento que exige o debate sobre a real vocação dos nossos espaços culturais. Que eles atendam tanto aos anseios da classe artística quanto às demandas das comunidades do seu entorno.

O lado positivo desta situação é que finalmente vemos a classe artística unida com a população em defesa de seu patrimônio e de um estilo de vida. A cidade parece ter acordado de 100 anos de ilusão com o progresso e parece disposta a negar sua vocação portuária como única opção para o futuro.

O autor é jornalista e cineasta

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