Autor(a) Convidado(a)

Setembro amarelo: qual a relação entre acesso a armas e suicídio?

Cerca de um terço dos casos de suicídio consistem em um ato impulsivo. Em 70% dessas situações, a pessoa leva menos de uma hora entre a decisão e a tentativa de se matar

  • Sivan Mauer
Publicado em 17/09/2020 às 10h00
Criança com as mãos na cabeça
Estudos apontam que dificultar o acesso a meios letais reduz o número de suicídios. Crédito: Dương Nnhân/Pexels

Como médico psiquiatra, vejo com muita preocupação a flexibilização da posse de armas no Brasil, que poderá influenciar diretamente para o aumento do número de casos de suicídio no país. Desde 2018, quando o assunto passou a ser tratado diretamente por aqui, passei a analisar o tema coletando números e levando em consideração estudos relevantes realizados em outros países. Com a chegada do Setembro Amarelo, campanha brasileira de prevenção ao suicídio, precisamos abordar com muito cuidado essas medidas que irão trazer graves consequências para a saúde pública no Brasil.

Aos poucos, o governo federal vem facilitando o acesso a armas de fogo por meio de decretos, como o que aumenta o limite de número de armas para colecionadores, atiradores e caçadores, além de ampliar o acesso a munições. Há ainda outro decreto que liberou aulas de tiro esportivo para adolescentes a partir de 14 anos, medida extremante preocupante, tendo em vista o alto índice de suicídios entre adolescentes e jovens adultos. Entre janeiro e abril de 2020, foram registradas 48,3 mil novas armas no país, o maior número para este período nos últimos anos. Existe uma preocupação em relação a como a checagem dos pedidos de posse destas armas está sendo realizada, pois a cada 100 pedidos de registro feitos este ano, apenas um foi negado.

A Região Sul é a que mais se arma, o que é um fato bastante importante, pois esta é a região com risco de suicídio mais elevado do Brasil. Atualmente, o método mais utilizado para suicídios no país é enforcamento, seguido por uso de arma de fogo. Já nos Estados Unidos, onde a posse de armas é liberada, o método mais utilizado é a arma de fogo. Segundo os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos EUA, suicídio é a sétima maior causa de morte entre homens norte-americanos, e o país concentra a maior taxa de suicídio por armas de fogo no mundo.

Especialistas sugerem que ao dificultar ou retirar o acesso a meios letais é possível reduzir o número de casos de suicídio. Na Inglaterra, por exemplo, os suicídios por intoxicação de monóxido de carbono caíram consideravelmente quando os fornos a carvão foram substituídos por gás natural. Apenas esta mudança representou uma diminuição de 34% dos casos entre homens e 32% entre mulheres. Outro exemplo é o banimento de herbicidas na Coreia do Sul, medida que reduziu em 10% os casos de suicídio.

Cerca de um terço dos casos de suicídio consistem em um ato impulsivo. Em aproximadamente 24% dos casos a pessoa leva menos de cinco minutos entre a decisão de se matar e a tentativa de suicídio, em 70% dos casos, leva menos de uma hora. As crises envolvendo ideação suicida normalmente são autolimitadas, podendo estar relacionadas com términos de relacionamento, perda de emprego ou problemas com a polícia. Quando as crises passam, a urgência da tentativa de suicídio também passa.

Um estudo na Califórnia demonstrou, diante do acesso a armas de fogo, as mulheres têm mais chances de se suicidar do que os homens. Este é um dado preocupante, já que historicamente as mulheres apresentam mais tentativas de suicídio. Com acesso a armas, a tentativa pode ser letal, e o número de suicídios entre mulheres pode crescer drasticamente.

Já um estudo em Israel, feito com soldados das Forças Armadas, restringiu o acesso a armas de fogo durante as folgas de final de semana. A medida diminui a taxa de suicídio em 40%. Na Finlândia, uma pesquisa comparou os suicídios entre o Norte e o Sul do país. As taxas de suicídio por arma de fogo no Norte são quase três vezes maiores que no Sul. Não existe diferença entre taxa de suicídio sem arma de fogo, a grande diferença é que a posse de arma no Norte é o dobro que no Sul da Finlândia. Além disso, estudos comparativos mostram que se os Estados Unidos tivessem a mesma política restritiva de porte e posse de armas de fogo que o seu vizinho Canadá, onde é exigido, entre outros, um curso de segurança, haveria uma redução de cerca de 26% no número de suicídios no país.

Alguns países têm mudado e tornado suas legislações mais rígidas em relação ao acesso a armas. A Suíça, um dos países com maior número de armas per capita no mundo, decidiu por meio de um referendo, realizado em 2019, endurecer as leis de acesso a armas. Na Nova Zelândia, é necessária uma entrevista com a polícia e a realização de uma prova sobre regulamentação, uso, segurança e armazenamento das armas. Além disso, há ainda uma vistoria doméstica para checar as condições de armazenamento. Essas medidas diminuíram 66% dos casos de suicídio entre adolescentes e 39% entre adultos.

A dificuldade de acesso a meios letais, como as armas de fogo, é um dos poucos meios de políticas efetivas de prevenção ao suicídio. Com a flexibilização ao acesso existe uma grande possibilidade de as taxas de suicídio aumentarem no Brasil, tendo em vista que o suicídio é um ato impulsivo na grande maioria dos casos. Em breve o uso de armas de fogo deve ultrapassar o enforcamento como método mais letal no nosso país. Infelizmente, estamos indo na contramão da grande maioria dos países desenvolvidos e, como consequência, em pouco tempo teremos um novo problema de saúde pública além da Covid-19: o suicídio.

O autor é médico psiquiatra especialista em transtornos do humor, mestre em Pesquisa Clínica pela Boston University School of Medicine (EUA) e doutor em Psiquiatria pela USP

A Gazeta integra o

Saiba mais
Depressão suicídio Saúde mental

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.