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Papel moderador das Forças Armadas é leitura desonesta da Constituição

Não existe espaço para rearranjos de regras, com base em interpretação acrobática do artigo 142 da Carta Magna. É assustador que, em pleno ano de 2020, o STF tenha que reafirmar o óbvio

  • Francis Ricken
Publicado em 01/07/2020 às 10h00
Atualizado em 01/07/2020 às 10h00
Guarda-cerimonial Santos Dumont, em cerimônia na Base Aérea de Brasília
Guarda-cerimonial Santos Dumont, em cerimônia na Base Aérea de Brasília. Crédito: Agência Força Aérea/ Sargento Rezende

Nas últimas semanas, surgiu uma nova e falsa polêmica relacionada ao papel das Forças Armadas como gestoras de conflitos entre os Poderes da República, com base numa leitura acrobática do artigo 142 da Constituição.

A função das Forças Armadas está inserida no título que trata sobre a “defesa do Estado e das instituições democráticas”, e estabelece a existência de instituições capazes de defender a ordem, quando necessário, mas sem a possibilidade do uso de forças militares como influenciadoras das instituições e da política, assim como em todo país razoavelmente sério.

As Forças Armadas nunca tiveram o papel de moderação ou institucional como Poder. O único momento da nossa história que tal situação aconteceu foi durante uma ditadura. É um tanto quanto ingênuo ou maldoso fazer uso do texto constitucional como uma biruta, que gira de acordo com o sabor dos ventos. Quem o faz, deve estar motivado por interesses não democráticos.

A Constituição deixa claro que as Forças Armadas estão submetidas orçamentária e administrativamente ao Poder Executivo e qualquer tipo de mudança em seu efetivo estão vinculadas à competência do Congresso Nacional, ou seja, nada sobre um possível poder moderador. Aliás, tudo o que foge da lógica da tripartição de poderes e de seu equilíbrio, presente no artigo 2º da Constituição, deve ser considerado excepcional à ordem vigente e perigoso para a democracia.

Não existe espaço para rearranjos de regras já estabelecidas e claras, como se fossem permitidas interpretações à revelia dos entendimentos do STF, da manifestação do Poder Legislativo, ou até mesmo de conhecimento sobre a história da Assembleia Nacional Constituinte.

Em 1987/1988, nossos constituintes tinham como um dos principais objetivos restabelecer um regime democrático – e se opuseram claramente ao modelo constitucional ditatorial de 1969/1967, esse sim, permissivo à utilização das Forças Armadas de maneira atípica.

O modelo constitucional de 1988 não permite a interferência das Forças Armadas no Congresso Nacional, no Poder Judiciário e tampouco como moderador de conflitos institucionais. Nossos constituintes não tiveram o intuito de permitir tal situação, afinal estabeleceram um modelo democrático claro e, quando afirmamos o contrário, recontamos a história de forma a inventar trechos que nunca existiram.

É assustador que, em pleno ano de 2020, o STF tenha que reafirmar o óbvio, dizendo que os limites políticos devem existir, que os Poderes estão em igualdade de condições e que vivemos em um Estado Democrático, sem poder moderador das Forças Armadas.

Dentro de democracias, os conflitos entre os Poderes são normais e saudáveis para a reafirmação da existência do modelo constitucional. Em mais de trinta anos de Constituição democrática tivemos poucos problemas relacionados a essa administração, afinal, havendo um pouco de trato e interesse entre os Poderes, temos diversos mecanismos constitucionais capazes de solucionar conflitos.

Os problemas surgem quando temos um líder político que gosta de vencer no grito. Nessa situação, é papel dos Poderes limitar seus rompantes e dizer qual o seu lugar, um claro momento em que a Constituição vence o poder político e modera o conflito entre Poderes.

*O autor é advogado, mestre em Ciência Política e professor da Escola de Direito e Ciências Sociais da Universidade Positivo

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