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O que a falta de respiradores tem a ver com a desindustrialização no Brasil

Nosso parque industrial demonstra não ser hábil à produção em massa; são décadas de desmonte e de falta de políticas e investimentos públicos voltados à evolução do setor secundário

  • Lorenzo Caser Mill
Publicado em 15/04/2020 às 09h01
Atualizado em 15/04/2020 às 11h52
Novos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) com respirador no Hospital Jayme Santos Neves, na Serra.
Novos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) com respirador no Hospital Jayme Santos Neves, na Serra. . Crédito: Adriano Zucoloto/Governo do Estado/Divulgação

A pandemia provocada pelo novo coronavírus, decerto o maior transtorno sanitário de nossa geração – finjamos que 48% de nossos conterrâneos não possuem acesso a saneamento básico –, tem servido como oportunidade de reflexão nas mais diversas áreas do conhecimento. Naturalmente, os temas que guardam vínculo, ainda que remoto, com as urgentes necessidades do sistema de saúde e dos profissionais que nele atuam ganham merecido protagonismo nas querelas cotidianas.

Um desses temas é a dramática falta de equipamentos hospitalares, sobretudo de respiradores artificiais. E, investigando tal problema, é inevitável não acusarmos um fenômeno crescente no país há 40 anos: a dependência de importação de insumos de média-alta tecnologia sofrida pelo tecido industrial brasileiro.

Pouco a pouco, importamos menos insumos primários e de baixa tecnologia, enquanto importamos cada vez mais os que contribuem científica e tecnologicamente para o sistema nacional de inovação, o que significa um "esgarçamento" — lembra da calça jeans? — da indústria de transformação potencialmente geradora de riqueza, reputada como de alto valor agregado.

Esgarçamento porque, se não fabricamos o que resulta em tecnologia e inovação, a indústria deixa de ser viável do ponto de vista logístico e econômico para setores estratégicos, que demandam essa tecnologia de ponta; afinal, a ciência tem como propósitos simplificar e baratear processos. Sem esses setores, o tecido industrial se rasga, esgarça. Igual à calça jeans. Passa a valer mais a pena exportar grãos ou abrir uma lojinha, e não produzir equipamentos médico-hospitalares.

Enfim, eis o motivo de nos faltarem, talvez de forma irreversível, equipamentos de ventilação mecânica. Para além da baixíssima relevância diplomática que atualmente enfrentamos – o que dificulta a importação dos disputados aparelhos –, nosso parque industrial demonstra não ser hábil a essa produção em massa. São décadas de desmonte e de falta de políticas e investimentos públicos voltados à evolução do setor secundário.

Exemplos dessa periférica mentalidade não faltam. O mais recente é o caso Embraer, em que uma empresa dominante em seu nicho de mercado – jatos de médio porte voltados à aviação regional –, implacável com os concorrentes nos últimos 20 anos e preceptora de lucros recordes para o setor foi afavelmente cedida a uma concorrente estrangeira.

Sim, senhor: a Embraer é personagem central em tecnologia aeronáutica, tendo, inclusive, expulsado a Boeing do ramo de jatos médios. Sua parte comercial, por óbvio a mais lucrativa, acabou vendida a preço de banana, com anuência do governo federal, para essa mesma Boeing. Que outro governo no mundo, dotado de poder decisório, permitiria uma operação semelhante?

Cedemos a joia da coroa industrial em um país cuja balança comercial segue ancorada em commodities. Erro crasso. Nesse ritmo, deixaremos de produzir aviões e, em breve, também respiradores artificiais e demais maquinarias necessárias à sobrevivência da nossa população. A conclusão de Raymundo Faoro sobre o fracasso das políticas econômicas de Portugal, que se estenderam ao Brasil colonial, parece bastante atual: sem a fixação de fontes produtoras nacionais, houve o predomínio da “especulação – a mola, por alguns séculos, da riqueza, fruto do golpe audaz, do expediente astuto, da aventura temerária, e não do trabalho continuado, do cálculo e da poupança”.

O autor é advogado e pesquisador vinculado ao CNPq

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