Michael Sandel, filósofo norte-americano e autor do livro “O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado”, traz reflexões sobre o papel desempenhado pelo mercado e se de fato existem certas coisas que o dinheiro não pode comprar. Segundo Sandel, “a chegada do mercado e do pensamento centrado nele a aspectos da vida tradicionalmente governados por outras normas é um dos acontecimentos mais significativos da nossa época”.
Para um debate acerca do nosso Direito Civil e das reflexões propostas por Sandel, fiquemos com um exemplo fornecido pelo filósofo acerca da transformação do corpo em um outdoor, isto é, “vender” parte do nosso próprio corpo como um espaço para publicidade comercial.
Nos Estados Unidos da América, em 1998, os proprietários de um restaurante familiar mexicano propuseram uma oferta de almoço gratuito para cada pessoa que tatuasse seu logotipo no corpo. A marca do restaurante era um garoto de sombreiro (chamado Jimmy, o homem do milho) que parecia cavalgar em uma enorme espiga de milho no estilo foguete.
A propaganda era assim: “Get a tattoo of ‘Jimmy the cornman’ and get free lunch at the Casa Sanchez restaurant for life” (faça uma tatuagem de “Jimmy o homem do milho” e ganhe almoço grátis no restaurante Casa Sanchez para o resto da vida). A família Sanchez não levou fé que tanta gente poderia de fato tatuar o logotipo e, assim, ganhar tacos e burritos de graça na hora do almoço.
Só que em questão de meses, mais de 40 pessoas já caminhavam pelas ruas de San Francisco com a tatuagem do logo da Casa Sanchez. Os donos do restaurante, por óbvio, ficaram felizes. Ocorre que, em uma estimativa rápida, se todas as pessoas que tatuaram o Jimmy quisessem almoçar de graça todos os dias da semana nos próximos 50 anos, a Casa Sanchez teria um custo total em torno de 5,8 milhões de dólares em seus almoços.
O restaurante fechou as portas em 2012. Não por culpa da promoção. E os tatuados com o logotipo? Há notícias na internet informando que o novo restaurante que assumiu o local passou a oferecer pupusas (tradicional prato de El Salvador) de graça para eles. Bom negócio?
A questão que queremos rapidamente refletir não diz respeito à gestão empresarial do restaurante Casa Sanchez. Queremos refletir sobre o ato de dispor do próprio corpo de forma onerosa, que envolva comércio, remuneração. No Brasil, podemos realizar essa comercialização do nosso corpo, como colocar à venda o nosso braço ou a nossa perna para tatuar o logotipo de um restaurante ou um supermercado para ganhar algo desta empresa? Ou, até mesmo, tatuar (de forma temporária) na parte de trás da cabeça o slogan de uma companhia aérea que poderia dizer “Precisando mudar? Viaje para a Nova Zelândia” (caso real do que se chamou de “outdoors cranianos”), e, dessa forma, receber uma viagem gratuita da empresa aérea?
Primeira reflexão: se a pessoa possuir capacidade plena dos seus atos (maior de 18 anos de idade e não interditado) e a transação (venda do “espaço” do corpo para publicidade) não for algo que seja ilícito ou contenha alguma proibição em lei, então não há, em tese, nenhuma afronta à lei, de acordo com o artigo 104 do Código Civil brasileiro.
Se o cidadão desejar “vender” um espaço de seu corpo para uma empresa realizar propaganda comercial, esse é um “problema” só dele, ora pois. Seria como se fosse um anúncio publicitário, em uma perspectiva parecida com a exploração comercial do direito à imagem de atores e jogadores de futebol.
Um exemplo hipotético seria o caso de uma pessoa receber R$ 1 mil para fazer uma tatuagem temporária em seu braço, de forma visível, com o símbolo de um famoso supermercado da Grande Vitória e com o slogan dessa empresa. Ora, R$ 1 mil hoje em dia cairia muito bem, não?
É aí que começam os dilemas morais. E o Direito Civil também entra em ação.
Os chamados “direitos da personalidade” são aqueles que têm por objeto bens e valores essenciais da pessoa, como o direito à vida, ao próprio corpo, à honra, à liberdade, à intimidade, à imagem e ao nome. São inatos ao ser humano. São irrenunciáveis, imprescritíveis e indisponíveis. São também inalienáveis, isto é, não podem ser vendidos, avaliáveis em dinheiro, salvo as exceções previstas em lei, como no caso de exploração do direito de imagem acima mencionada.
O direito ao próprio corpo é, assim, um direito da personalidade, que não pode ser disponível, renunciado nem vendido, a não ser nas exceções legais.
Dispor do próprio corpo, isto é, das partes que compõem o nosso corpo humano, como os órgãos, os tecidos, a pele, o cabelo, a perna etc., significa fazer livremente o que o seu titular bem entender. Nesse sentido, o artigo 13 do Código Civil brasileiro estabelece que é proibido, salvo por exigência médica, “o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”.
Na legislação, além dessa previsão do Código Civil no tocante aos direitos da personalidade, temos a legislação que trata sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Na Lei nº 9.434, de 04/02/1997, há regra que determina ser permitido à pessoa plenamente capaz de dispor, de forma gratuita, de seus tecidos, órgãos e partes do seu próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes. Essas situações são reguladas tanto nessa lei quanto no Decreto nº 9.175, de 18/10/2017, sem prejuízo de outras regulamentações mais específicas do Ministério da Saúde ou outros órgãos públicos.

Voltamos então ao artigo 13 do Código Civil. Se a tatuagem do Jimmy não importa em diminuição permanente da integridade física da pessoa, então ela iria de encontro ao que entendemos por “bons costumes” (parte final do artigo 13 do Código Civil)? Já vi umas tatuagens que, pessoalmente, não me agradaram muito. Eu não faria no meu corpo. Meu gosto pessoal pode não ser o mesmo que o seu, ok (rápida reflexão: e isso é bom, porque as diferenças nos oportunizam o crescimento e nos fazem desenvolver enquanto seres humanos, buscando compreender e respeitar o outro, além de aprender com nossas diferenças).
A questão, todavia, é quando envolve dinheiro, e o mercado, nesse ponto, acaba por descartar princípios que devem sim ser respeitados. Bons costumes, aqui, tem a ver com dilemas morais sobre os quais precisamos refletir.
Como dizia Sandel, para decidir o que o dinheiro pode e não pode comprar, devemos saber quais são de fato os valores que governam nossas vidas no campo cívico e social. Temos de decidir que valor atribuir à saúde, à educação, à natureza, à vida familiar, à arte etc. Há, nem que seja mínima, uma forma de degradação ou corrupção quando algumas coisas boas da vida são transformadas em mercadorias.
De certo ponto de vista, entender que a tatuagem significou vender parte do seu corpo para uma rede de restaurante pode, sim, significar um atentado à moral e aos bons costumes. Mas se uma pessoa vende cabelo para clínicas estéticas e outras empresas com o fim de comercializar cabelos para fazer apliques (mega hair) ou perucas, por que uma simples tatuagem do menininho para ganhar tacos de graça durante toda sua vida não poderia ser feita?
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