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A arte contra a asfixia

"A vacina para o vírus ainda não deu as caras; já os artistas oferecem a cura para o desalento, pros isolados que sofrem sob os saltos mortais da dor"

Publicado em 13/06/2020 às 13h01
Jace Theodoro.
"A arte, tão crucificada pela roda dentada da ignorância, tem sido o abraço de quentura no isolamento", diz Jace Theodoro. Crédito: Arquivo pessoal

Sou um artista em estado remoto. Subi mais de 1.800 colinas, como fez Beth Carvalho, e, ao contrário da madrinha do samba, encontrei, entre amigos, sombras de quem e o que eu desejava em encontrar nas montanhas onde resolvi passar estes dias da “gripezinha” mortal. A solidão, feito a ingratidão do poeta Augusto dos Anjos, tem sido nossa companheira inseparável.

Estamos distantes do ombro dos amigos diários, dos badulaques da mesa de trabalho, do beijo de chegada do amante. O mundo está apartado, embora eu tenha o privilégio de ter sido acolhido na casa da amiga Bernadete com o perfume das flores ascendendo no jardim e a comida com gosto de conforto no fogão à lenha. Reconheço a sorte de, num momento de ausências de todos os modos, me fazer presente entre os distantes.

Nossa liberdade foi roubada e não se pode fazer concessões a isso porque o vírus tem escolhido vítimas soltas em um tipo de liberdade que pode matar o outro. Eu vou pra rua só pelo desejo de fazer o que quero (falo dos que têm a opção de ficar em casa) me contamino e passo adiante a doença. Placar simples: Covid 40 mil mortos x Empatia 0. E daí, afinal, esse é o destino de todos. Quem foi mesmo o filósofo da indiferença que cuspiu a pérola? Abeife the case.

Reparem, nobres leitorxs, que o primeiro parágrafo da crônica desabrocha em citações de música e de poesia como saudação de abertura. São elas, neste momento, minhas opções preferenciais para cimentar pontes, dar nós aos laços e aterrar o abismo entre mim e os afetos do outro lado. Por meio das mãos poéticas, estendo as minhas. É como dou sentido à saudade.

Ao espalhar desejos poéticos pelas redes como forma de contato, recebo mensagens transbordantes de alegria de quem se conecta com a minha arte crua, porque despretensiosa, e a recebe como lenitivo pra solidão. Saber que o canto, a dança e a poesia podem iluminar o jogo de sombras deste mundão é presente pro artista. Um jeito de não perder o prumo porque o juízo, ah, minha gente, este foi perdido há tempos, não há o que fazer, sorry. Rá!

Música e arte
"Mesmo que uns não queiram, os respiradores que a arte produz continuam seu trabalho". Crédito: Tay Cabral

A arte, tão crucificada pela roda dentada da ignorância, tem sido o abraço de quentura no isolamento. As lives são uma espécie de âncora da empatia oferecida por artistas e inspiração para qualquer frequentador das redes sociais seguir o exemplo. Os artistas, uma das classes mais atingidas pela pandemia, estendem a mão da poesia e entram em nossas cavernas. Gritos de socorro silenciam na escuridão quando vozes cantam, poemas escorrem das bocas, instrumentos enchem de notas o ar e o humor se esparrama em sinal de saúde.

E respira-se em meio à asfixia sem tréguas. Porque George Floyd não resistiu à asfixia do racismo estadunidense como João Pedro e Miguel, vítimas da truculência brasileira para lidar com pretos e pobres, esses inclassificáveis aos olhos da turba do berço esplêndido verde-amarelo-não-me-toques. Se nos falta o ar, e ele anda escasso diante de tanto cala boca, Zebedeu, a arte nos recupera o fôlego, é o sopro de vida da Clarice, quando os números da tragédia tocam suas trombetas.

Mesmo que uns não queiram, os respiradores que a arte produz continuam seu trabalho, há vagas e leitos para os malucos da ideia, os doentes do peito e do coração que o Sampaio cantou, mais um entre as minhas invocações poéticas. A vacina para o vírus ainda não deu as caras; já os artistas oferecem a cura para o desalento, pros isolados que sofrem sob os saltos mortais da dor. Por eles, ainda respiramos. E enchemos de ar os pulmões da resistência.

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