Publicado em 15 de agosto de 2021 às 16:19
O Taleban, grupo que virou sinônimo de radicalismo fundamentalista islâmico e conduziu uma vertiginosa campanha militar de duas semanas, derrubou o governo do Afeganistão 20 anos após ser expulso do poder pelos Estados Unidos. >
Suas tropas entraram em Cabul pela primeira vez desde 13 de outubro de 2001, quando tiveram de se retirar da capital sob as bombas norte-americanas e britânicas que abriram caminho para forças adversárias da chamada Aliança do Norte. >
Desta vez, a entrada ocorreu sem resistência, apesar de relatos de tiroteios esporádicos na madrugada de domingo. >
O ex-chanceler Abdullah Abdullah, chefe do Conselho de Reconciliação Nacional, disse que pediu ao Taleban para conversar antes de ocupar todo o centro da capital, mas o grupo deixou as periferias e entrou, alegando querer evitar saques e manter a ordem. >
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O grupo afirmou que o palácio presidencial foi tomado, mas a informação ainda não foi confirmada pelo governo. >
Ao longo do dia, o presidente do país, Ashraf Ghani, ainda buscava uma solução negociada com os invasores, que prometeram moderação para incrédulos interlocutores ocidentais. >
"Queremos uma transição pacífica e evitar derramamento de sangue", afirmou à rede BBC um porta-voz taleban, Suhail Shaheen. >
Não deu certo. Segundo o Ministério do Interior, Ghani deixou o país no começo da noite (fim da manhã no Brasil). Seu governo, iniciado em 2014 e visto como um marionete das forças ocidentais, colapsou. Como será formado o novo governo é incerto, mas o Taleban venceu a guerra. >
Foram 19 anos, 10 meses e 3 dias desde aquele momento de derrota, que marcou o início da ocupação liderada pelos Estados Unidos. Washington buscava punir o grupo por ter abrigado a rede terrorista Al Qaeda, que ordenara os ataques do 11 de setembro de 2001, mas acabou atolada na sua mais longa guerra. >
Assim como as bombas do Ocidente removeram o Taleban de Cabul em meros sete dias, a ausência delas entregou todo o Afeganistão de volta aos radicais em duas semanas exatas. >
No domingo retrasado, aproveitando o virtual fim da presença militar americana no país após a decisão em abril do presidente Joe Biden de cumprir a retirada acertada por Donald Trump e o Taleban em 2020, os militantes deixaram as áreas rurais que dominavam parcialmente ao longo dos anos e fecharam cercos a capitais provinciais. >
As tropas deveriam deixar o Afeganistão em maio, mas Biden postergou o prazo para o fatídico 11 de setembro deste ano. Depois, o adiantou para 31 de agosto, mas o Taleban aproveitou a deixa, disse que o acordo havia sido rompido e abandonou a promessa de não buscar a vitória militar. >
A partir da sexta (6), as cidades caíram em dominó. Evitando deixar o norte do país como bolsão de resistência como nos anos em que governou, de 1996 a 2001, o Taleban investiu primeiramente na região de maioria étnica tadjique e uzbeque. >
As regiões fronteiriças já estavam em mãos talebans, tanto que a Rússia virtualmente militarizou o seu aliado Tadjiquistão ao enviar forças para um exercício, evitando assim o transbordamento do conflito. >
O sul e o sudoeste, áreas tradicionalmente associadas ao Taleban por serem majoritariamente da etnia do grupo, a pashtun, vieram a seguir. No sábado (14), caiu o bastião noroeste de Mazar-i-Sharif e, nas primeiras horas do domingo, Jalalabad, a cidade que liga Cabul à fronteira do Paquistão. >
Com isso, o Taleban entrou na capital. Apesar de alguns tiroteios relatados na madrugada, não houve a violência registrada nos cercos a cidades como Herat e Lashkar Gah. >
"Eles entraram com caminhonetes com metralhadoras .50 na caçamba. Muita gente foi para a rua, mas minha família está trancada em casa. Não sei o que vai acontecer", disse à Folha Salem, funcionário do Ministério das Relações Exteriores. Ele, que é tadjique étnico, não tem para onde fugir. >
"Falaram no ministério que o Taleban iria manter todo mundo empregado e que não haveria retaliações. Eu tenho dúvidas", afirmou. Houve relatos de massacres de colaboradores ocidentais em algumas das cidades tomadas na ofensiva deste ano, como Spin Boldak. >
Ghani viu comandantes militares fugirem da cidade, notadamente o poderoso senhor da guerra uzbeque Abdul Rashid Dostum personagem da vida militar e política afegã desde os tempos da ocupação soviética (1979-89). >
O presidente chegou a se encontrar com o enviado americano para a região, Zalmay Khalilzad. Ainda é nebuloso se haverá algum tipo de negociação com o que sobrou de seu governo. >
Os talebans, segundo agências internacionais, prometeram livre saída para quem quiser deixar a cidade. A questão óbvia é: para onde, já que o resto do país está tomado pelo grupo? >
Os americanos prometeram retirar, com um programa especial de vistos, aqueles cerca de 18 mil afegãos e suas famílias que trabalharam diretamente para eles nessas duas décadas. Só que é um processo longo, que pode durar mais de um ano, e não há tempo hábil. >
Enquanto isso, emergiram as primeiras imagens da evacuação americana, realizada por cerca de 5.000 fuzileiros navais enviados para a missão. A bandeira da embaixada foi arriada, assim como de várias outras representações ocidentais >
Se não houve diplomatas pendurados numa escada tentando alcançar um helicóptero, como ocorreu em Saigon quando os comunistas ganharam a Guerra do Vietnã em 1975, a imagem de grandes aparelhos com dois rotores e uma fila de fugitivos é um desastre para Biden. >
A própria embaixada americana foi transferida para o aeroporto. "O fato é que as forças afegãs não conseguiram defender o país. Nós as equipamos com armas modernas, mas não deu certo", afirmou o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, à rede CNN. >
O fato de que a evacuação não está sendo afetada pelos talebans é um sinal claro de que, neste primeiro momento, o grupo está tentando passar uma imagem diferente daquela que imprimiu na sua passagem pelo poder, quando implantou um regime medieval de terror no país. >
O motivo é prático. Para sobreviver como governo, o grupo terá de ter acesso a financiamento externo e relações comerciais além do financiamento que recebe do tráfico de ópio para produção de heroína e outras atividades criminosas. >
O parceiro mais óbvio é o vizinho Paquistão, país onde o Taleban foi fomentado por agências de inteligência nos anos 1990, na esperança de que a vitória na guerra civil daria a Islamabad um aliado a oeste. >
Diferentemente daquela época, quando o Paquistão estava ligado aos EUA, agora quem dá as cartas no país é a China, principal parceira econômica e militar. E os chineses já deram sua bênção ao Taleban, num encontro há três semanas entre uma delegação do grupo e o chanceler do regime comunista. >
Os EUA buscam evitar o discurso derrotista. "Isto não é Saigon. Nós simplesmente não quisemos mais ficar lá. Cumprimos nossa missão", disse Blinken. Mas as implicações geopolíticas ainda são incertas, além de outros aspectos. >
O mais chamativo é qual tipo de governo será implantado. "Estou profundamente preocupada com as mulheres, minorias e ativistas de direitos humanos", disse a Prêmio Nobel da Paz Malala Yusufzai, a blogueira paquistanesa que defendia a educação de meninas e ganhou manchetes ao ser baleada pela filial paquistanesa do Taleban em 2012. >
Questionado pela BBC, o porta-voz taleban disse que nada mudaria em relação aos direitos das mulheres. "As escolas vão funcionar. Só pedimos que todas usem o hijab [véu islâmico que deixa o rosto à mostra, mas cobre o cabelo]", afirmou Shaheen. >
Mas ele declarou também que "nosso governo será islâmico" e aplicará a sharia [lei religiosa], embora afirme que "haverá liberdade de expressão e de imprensa", o que costuma ser contraditório no mundo muçulmano. E negou a volta da obrigatoriedade da burca, a cobertura total do corpo que ganhou fama mundial no regime taleban. >
A questão é que essa vestimenta tradicional dos pashtuns nunca desapareceu das ruas afegãs e paquistanesas, e parece óbvio que mulheres acabarão recorrendo a elas para se proteger dos novos donos do poder. >
Outra preocupação central diz respeito ao terrorismo. No seu encontro com os chineses, o Taleban havia prometido cortar laços com grupos radicais. Mas é certo que o que sobrou da Al Qaeda e integrantes do Estado Islâmico (EI) estão presentes em território afegão. >
O temor é a repetição do cenário iraquiano, onde a retirada americana acabou por levar à ascensão do EI, mas há diferenças importantes. O Taleban, ainda que seja terrorista, é antes de tudo uma força subnacional com forte base étnica que busca poder e território. >
Pelos seus movimentos iniciais e o contato mantido em Doha com os EUA na semana passada, além da entrada tranquila em Cabul, parece buscar se mostrar responsável. >
De todo modo, segundo o governo russo, militantes do grupo saíram da Síria em direção ao Afeganistão desde que Biden anunciou a retirada, em abril passado. >
Acredita-se que a rede do falecido Osama bin Laden manteve suas bases tanto nas áreas dominadas ao longo dos anos pelo Taleban como nos territórios tribais paquistaneses, junto à fronteira afegã. >
Bin Laden é central para a história que ganha novo capítulo neste domingo. Filho de um milionário saudita, ele juntou-se à luta dos mujahedin (guerreiros santos) contra a ocupação soviética. >
Depois que o Taleban tomou o poder na guerra civil que engolfou o país nos anos 1990, ele voltou de lá, fugindo do Sudão. Em 2001, planejou os ataques que geraram a guerra de 20 anos e se espalhou para o Iraque, Iêmen e outros pontos do mundo. >
Após Bin Laden ser morto por comandos americanos no Paquistão em 2011, os EUA começaram a considerar como deixar o atoleiro em que haviam se metido. >
Foram, segundo estudo da Universidade Brown (EUA), US$ 2,3 trilhões gastos no Afeganistão – o governo dos EUA fala em US$ 900 bilhões, mas é uma conta focada nos esforços militares, e não nos gastos indiretos. >
O custo humano foi enorme. Cerca de 170 mil pessoas morreram, apenas uma fração delas (2.300 militares e o dobro em mercenários) americana. >
Demorou dez anos para Biden, com apoio popular, tomar sua decisão. Os riscos dela para o mundo, principalmente para os 390 mil afegãos que já deixaram suas casas na crise atual e para os 37 milhões de habitantes agora sob o Taleban, ainda são incógnita. >
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