Publicado em 10 de setembro de 2021 às 17:26
Um papa não viaja à toa. E Francisco parece empenhado em voltar a mexer peças, espalhando suas mensagens, no xadrez da geopolítica. No domingo (12) ele inicia uma viagem, que deve durar até a quarta-feira (15), a dois países da antiga Cortina de Ferro: Hungria e Eslováquia. >
Será o segundo tour papal em meio à pandemia, depois de uma visita ao Iraque no primeiro semestre -2020, por causa do coronavírus, foi o primeiro ano sem nenhuma viagem internacional de um pontífice desde 1978. Se já há um peso importante na retomada dos deslocamentos do líder da Igreja Católica, mesmo que a Covid-19 ainda não tenha sido vencida, os destinos da vez amplificam os significados. >
Historicamente, tanto Hungria quanto Eslováquia conservam maioria católica na população (dados da Santa Sé indicam, respectivamente, 61% e 74% de adeptos nesses países), mesmo que a religião tenha sido perseguida durante o período de domínio socialista. O primeiro ainda vive um momento particular, sob o contexto da ascensão global da extrema direita, movimento do qual o primeiro-ministro Viktor Orbán é um dos principais expoentes -num governo que exacerba nacionalismo dizendo defender, entre outros, os valores cristãos. >
"Qualquer viagem do papa é sempre religiosa e política. Ele não viaja só com fins religiosos, mas também como chefe de Estado", diz o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. >
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"Francisco é um homem de certa idade [completa 85 anos em dezembro], enfrenta problemas de saúde [passou por uma cirurgia no intestino em julho], tem enfrentado grupos da Igreja extremamente conservadores e faz um papado progressista, tentando colocar, ao seu jeitão, o dedo na ferida. Ele parece saber que não tem muito tempo e usa esse senso de urgência para escolher, com visão estratégica, as regiões para suas visitas apostólicas." >
Doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, o vaticanista Filipe Domingues avalia que "falar de Deus nessa parte do mundo tem um peso especial", dados o passado de repressão e perseguições e o contexto do domínio socialista. "Quando Francisco fala de religião, de fé, também está falando de política. Fé e política, nessa região, onde houve falta de liberdade religiosa, sempre vão estar juntas, e é inevitável levar em conta o contexto atual." >
Um contexto em que o cerco a liberdades civis e instituições não vem mais da esquerda socialista, como no século 20, mas do extremismo de direita protagonizado por Orbán. >
"Francisco busca dar um recado muito claro sobre posições totalitárias quando escolhe visitar um país que vive um endurecimento de regime, com postura tirânica [do premiê]", afirma Moraes. >
No último domingo (5), após a oração do Angelus, o papa falou sobre o que será sua 34ª viagem internacional --somando 52 países em seu passaporte pontifício. "Confio as visitas que realizarei à intercessão de tantos heroicos confessores da fé que, nesses lugares, deram testemunho do Evangelho no meio da hostilidade e das perseguições. Que eles ajudem a Europa a dar testemunho também hoje, não tanto com palavras, mas sobretudo com ações, com obras de misericórdia e acolhimento", disse. >
A primeira parada de Francisco será na capital húngara, Budapeste, para celebrar a missa de encerramento do Congresso Eucarístico Internacional. De lá parte para o país vizinho, onde deve visitar as cidades de Bratislava, Presov, Kosice e Sastin. Antes de receber o argentino, a Hungria foi destino de duas visitas papais, e a Eslováquia, de três (uma delas, quando ainda era parte da Tchecoslováquia) --todas de João Paulo 2º (1920-2005). >
Os excessos totalitários do regime soviético deixaram cicatrizes no povo católico da região. De acordo com levantamento de Fernando Altemeyer Junior, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, durante o período socialista cerca de 30 padres húngaros foram assassinados e 14 mil religiosos de ambos os sexos acabaram presos em campos de concentração. >
Na Eslováquia, o quadro de perseguição foi similar. Bispo-auxiliar de Trnava, Michal Buzálka (1885-1961) foi preso e assassinado pelo regime totalitário. No período, igrejas funcionaram na clandestinidade, com celebrações às escondidas, seminários foram proibidos e novos sacerdotes acabaram sendo formados em grupos de estudos que ocorriam longe das vistas das autoridades. >
Para João Paulo 2º, visitar esses locais marcava uma posição no contexto da reabertura da Cortina de Ferro; o polonês criticava os abusos do totalitarismo de esquerda. Para Francisco, o cenário de extremismo guarda semelhanças, mas do lado oposto; o argentino preocupa-se com o crescimento do totalitarismo de direita. >
"Em suas viagens, ele não vai à 'casa das pessoas' e joga na cara o que está de errado. Mas deve, sim, falar dos problemas, sinalizar para o avanço do autoritarismo, o excesso de nacionalismo", afirma Domingues. Dessa forma, o pontífice deve recuperar a mensagem central da encíclica "Fratelli Tutti", de 2020. "A ideia de se abrir para o outro, de resolver juntos as questões." >
O vaticanista concorda com a visão de que, mais do que o discurso, o gesto de escolher visitar esses países já embute uma mensagem por parte de Francisco. "Ele deve mostrar que todas as formas de autoritarismo são ruins, tanto o de direita atual quanto o de esquerda que houve no passado. Autoritarismo não é compatível com a mensagem do Evangelho, isso está claro para a Igreja, como ensinamento, como magistério." >
Para os especialistas, ao ir ao encontro "dos que sofreram as perseguições", Francisco imprime seu recado, de que não é um papa de grandes teorias, mas do abraço pastoral. >
"Quando os valores de liberdade são ameaçados, como na Hungria, por um governo de ultradireita, radical, a presença do papa faz toda a diferença", afirma Moraes. "E no ambiente europeu, que vive um processo galopante de secularização, com a religião perdendo força, é estratégico para a Igreja que o papa visite uma região com alta proporção de católicos." >
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