Publicado em 23 de outubro de 2023 às 08:15
BUENOS AIRES - A Argentina fez jus às suas eleições mais incertas das últimas décadas e terminou em uma nova surpresa neste domingo (22). Mesmo liderando uma grave crise econômica, o atual ministro da área, Sergio Massa, superou o favoritismo do ultraliberal Javier Milei, com quem disputará o segundo turno em 19 de novembro.>
Com mais de 90% das urnas apuradas, o candidato peronista acumulou 36,4% dos votos válidos nas urnas, contra 30,1% do libertário, que aparecia na frente na maioria das pesquisas e frustrou a expectativa de seus apoiadores de vitória no primeiro turno. Já a macrista Patricia Bullrich somou 23,8% dos eleitores e está fora da corrida.>
Apesar de ter saído na frente e demonstrado a força de sua máquina ideológica e partidária, o peronismo registrou sua pior votação em 40 anos de democracia. A coalizão Juntos pela Mudança, por sua vez, sofreu uma derrocada e está fora de um segundo turno pela primeira vez nos últimos oito anos.>
A partir de agora, o eleitor argentino terá que escolher entre dois modelos de país essencialmente diferentes: o primeiro com certo grau de continuidade pela esquerda — apesar de Massa estar mais ao centro do que o governo do presidente Alberto Fernández — e o segundo de profunda ruptura liberal de direita.>
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Após o resultado, Massa fez um discurso em que se contrapôs a Milei, sem citar o adversário. O peronista falou em fazer um governo de unidade nacional e acenou aos candidatos Juan Schiaretti e Myriam Bregman (com cerca de 7% e 3% dos votos, respectivamente).>
Também se dirigiu a eleitores que querem um país sem incertezas, dizendo que fará esforços para ganhar a confiança deles e contrapondo políticas de Estado, como fortalecimento da educação pública, a propostas liberais, como o oferecimento de vouchers.>
"Estou convencido de que esse não é um país de merda como têm dito, mas que esse é um grande país", disse.>
Milei, por sua vez, tentou se mostrar feliz e esperançoso, embora o QG de sua coalizão não mostrasse a euforia vista nas primárias. "Não deixemos de ter a real magnitude do evento histórico frente ao qual estamos. Em dois anos, viemos disputar o poder com o mais nefasto poder da história da democracia moderna", disse.>
Ele também indicou que buscará uma aliança para o segundo turno: "Hoje eu dou por terminado esse processo de agressões e ataques e estou disposto a fazer tábula rasa para terminar com o kirchnerismo".>
Para o analista político Gustavo Córdoba, diretor da empresa de pesquisas Zurban Córdoba, a atuação de governadores e militantes peronistas espalhados pelo país pode ter pesado. "A territorialidade ainda tem um valor importante na Argentina", afirma ele, que, apesar disso, vê os resultados do primeiro turno com cautela.>
"Todo segundo turno é uma eleição completamente diferente. Em 2015, Mauricio Macri [PRO] ficou em segundo, mas terminou triunfando por três pontos. Agora é preciso ver como se reconfigura o cenário da representação política do país, o que vai acontecer com o Juntos pela Mudança e os eleitores de Bullrich", opina.>
Já Nayet Kademián, cientista política da Universidade Nacional de San Martín, diz que imperou o temor das propostas radicais de Milei, impulsionado pela campanha de Massa. "As pessoas levaram Milei a sério, o medo aumentou. Além disso, o aumento da participação eleitoral em relação às primárias parece ter favorecido Massa.">
Do outro lado, Milei foi o candidato mais votado nas primárias de agosto e tem como promessas centrais dolarizar a economia argentina — após um período de livre concorrência entre as moedas —, acabar com o Banco Central e diminuir drasticamente os gastos do Estado num país habituado há mais de 20 anos com subsídios.>
Ele trilhou sua carreira como economista no mundo acadêmico, mas ganhou fama bradando suas opiniões radicais e "anticasta" em programas de TV. Chegou a deputado federal em 2021 e então a presidenciável, atraindo principalmente os votos de protesto ou desesperança em relação às duas maiores forças políticas que geriram o país nas últimas duas décadas.>
Milei também costuma usar sua forte presença nas redes sociais, um dos pontos que o faz ser comparado ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no Brasil. Ambos se aproximam ao criticar o comunismo, defender o porte de armas e negar as mudanças climáticas, por exemplo, mas se diferenciam em temas como família e religião.>
No momento, porém, a grande questão dos argentinos é saber o que vai acontecer com suas economias em pesos nesta segunda (23). O temor é que o dólar, e portanto os preços, disparem com os resultados, o que é um movimento comum após eleições no país, mas se intensificou diante de um candidato que propõe acabar com a moeda local.>
Eles foram às urnas neste domingo depois de meses de uma aflitiva espera vendo a inflação subir, com parte das vendas, compras e importações paralisadas, enquanto o governo tenta segurar as pontas até que se defina quem será presidente a partir de 10 de dezembro.>
Mesmo com a grande expectativa e o caráter histórico da disputa, a participação foi a mais baixa em 40 anos. Apenas 74% dos eleitores compareceram às urnas, contra 80% no primeiro turno de 2019. O número, porém, foi mais alto do que nas primárias de agosto, quando o índice ficou em 70%.>
A votação se deu de forma tranquila e com menos tensão do que nas eleições primárias. Naquela ocasião, uma regra que impôs o voto eletrônico para candidatos ao governo da cidade de Buenos Aires causou longas filas e brigas em diversos locais.>
O voto de Milei em uma universidade de Buenos Aires, porém, teve empurra-empurra, pessoas passando mal e bate-boca com jornalistas, além de cantos de torcida e "Parabéns para Você", já que o candidato completa 53 anos no mesmo dia das eleições.>
A Argentina atravessa sua terceira grande crise econômica recente, com um déficit fiscal insistente, alta dívida externa e falta de reservas da moeda americana nos cofres públicos, o que faz a roda da inflação girar e engrossa as filas da pobreza. Quatro em cada dez não conseguem pagar as despesas básicas, sendo que um desses é considerado indigente e sequer pode bancar a alimentação.>
Até agora, avaliam analistas, um eventual caos social tem sido contido por uma taxa de desemprego baixa, por um consumo e atividade econômica que não vão mal apesar de começarem a dar sinais de esgotamento e pela ligação histórica do governo atual com a maioria dos sindicatos e movimentos sociais. Há temor, porém, de que a situação saia do controle de alguma forma a partir daqui.>
Para o Brasil, que tem o vizinho como terceiro maior parceiro comercial, está em jogo uma relação de proximidade com Lula, embora seja improvável que Milei corte totalmente o vínculo com seu principal importador e exportador. A equipe do ultraliberal defende rever o Mercosul e se opõe à entrada no Brics, mas diz que o setor privado pode "comercializar com quem quiser".>
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