Publicado em 4 de outubro de 2020 às 12:51
O papa escolheu o dia dedicado a São Francisco de Assis, santo que inspirou o nome adotado por ele como pontífice, para publicar um chamado à fraternidade universal em que ataca as injustiças do capitalismo global, pede que os imigrantes sejam acolhidos e defende o diálogo entre religiões e culturas diferentes.>
"Fratelli Tutti" ("Todos Irmãos", em italiano), a nova encíclica do papa Francisco, foi assinada por ele em Assis (cidade natal do santo, na Itália central) em 3 de outubro, data em que o fundador dos franciscanos morreu em 1226, e teve seu conteúdo divulgado no dia seguinte.>
É a primeira vez que um desses documentos papais é assinado fora de Roma. Também foi a primeira vez que o papa Francisco saiu do Vaticano e da capital italiana desde o início da pandemia causada pelo novo coronavírus. Assis, normalmente cheia de peregrinos e turistas do mundo todo, estava quase vazia durante a visita do pontífice argentino, que celebrou uma missa para poucas pessoas na cripta onde são Francisco está enterrado e preferiu se manter em silêncio depois do rito.>
O simbolismo da carreira do santo medieval está presente desde os primeiros momentos do pontificado de Jorge Bergoglio, guiando sua preocupação com o que chama de "uma Igreja pobre para os pobres" e com a preservação ambiental. O título do novo documento também veio de um dos textos do religioso, tal como aconteceu com "Laudato Si'", a encíclica "verde" do papa, publicada em 2015.>
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Logo no começo da nova missiva, no entanto, o papa decidiu destacar outro aspecto da vida de são Francisco: sua decisão de visitar pacificamente os muçulmanos do Egito e seu sultão, Malik-al-Kamil, numa época em que cristãos e seguidores do Islã guerreavam pelo controle da Terra Santa, durante as Cruzadas.>
"É impressionante que, há oitocentos anos, Francisco recomende evitar toda forma de agressão ou contenda e também viver uma 'submissão' humilde e fraterna, mesmo com quem não partilhasse a sua fé", escreve o papa, numa provável referência ao próprio Islã, termo que etimologicamente significa algo como "submissão a Deus" em árabe. "Não fazia guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicava o amor de Deus.">
Além das ações do santo, outra inspiração para a encíclica, segundo o pontífice, foi a colaboração entre ele e o grande imã Ahmad Al-Tayyeb, clérigo da prestigiosa Universidade Al-Azhar, no Egito. Francisco e Al-Tayyeb assinaram juntos um documento sobre a fraternidade humana em Abu Dhabi, em fevereiro de 2019, e o religioso islâmico é citado diversas vezes ao longo da "Fratelli Tutti".>
Em parte, a encíclica soa como um reconhecimento, por parte do papa, de que sua visão sobre o futuro da Igreja Católica e das relações internacionais tem sido rejeitada por boa parte do mundo nos últimos anos. Entusiasta da integração entre os países europeus, da busca de soluções diplomáticas para conflitos e do combate às mudanças climáticas, Francisco alerta que "a história dá sinais de regressão".>
"Reacendem-se conflitos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais", escreve o papa. "Frequentemente as vozes que se levantam em defesa do ambiente são silenciadas ou ridicularizadas, disfarçando de racionalidade o que não passa de interesses particulares.">
Francisco atribui boa parte da culpa por esses retrocessos ao que costuma chamar de "cultura do descarte", um tipo de pensamento voltado apenas para a eficiência econômica e que tende a marginalizar os mais vulneráveis da sociedade, em especial os pobres, os que sofrem de alguma deficiência, os idosos e os jovens.>
Papa Francisco
Trecho da nova encíclicaÉ preciso pensar num modelo alternativo de civilização que contrarie essa lógica, diz Francisco, para quem a maior inspiração deve vir da parábola do Bom Samaritano, contada por Jesus no Evangelho de Lucas. Na narrativa bíblica, um homem atacado e gravemente ferido por ladrões numa estrada é socorrido por um samaritano (etnia considerada desprezível pelos judeus do tempo de Cristo), enquanto um sacerdote e um levita, membros da elite religiosa de Jerusalém, passam pelo necessitado e nada fazem.>
A história não apenas enfatiza a importância da solidariedade como também mostra que é preciso romper as barreiras de preconceito que separam as pessoas por raça, credo ou orientação política, como as que separavam judeus de samaritanos na época de Jesus, afirma Francisco.>
Tal princípio tem de ser colocado em prática para acolher os imigrantes que estão em busca de uma vida melhor, segundo a encíclica. Ao mesmo tempo, o papa defende que não se deve conduzir ao apagamento das diferenças culturais ou religiosas, mas que fortalecer a identidade própria de cada cultura é um passo importante para o diálogo sadio com os outros e para o enriquecimento mútuo trazido pelo contato entre os povos.>
Como em outras de suas pregações, Francisco alerta para o fato de que o mundo estaria vivendo uma "terceira guerra mundial por pedaços", considerando os muitos conflitos étnicos e religiosos de pequena escala que afligem o planeta. Diante dessa situação, ele propõe uma reformulação importante da doutrina católica sobre as chamadas "guerras justas", afirmando que o recurso à guerra praticamente não pode mais ser justificado hoje. Para ele, o mesmo vale para a pena de morte.>
Vista em seu conjunto, a nova encíclica talvez seja o resumo mais claro dos caminhos propostos por Francisco ao catolicismo e à sociedade global. Diante de um mundo cada vez mais polarizado, o papa redobrou sua aposta no que chama de "cultura do encontro". Resta saber se ainda está em tempo de fazer a maré virar.>
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