• Maria Sanz

    É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Crônica: Ginga!

Publicado em 24/07/2022 às 02h00
Dança

Porque no fim das contas é isso: tornar-se habilidoso para realizar o propósito que viemos cumprir por aqui é saber dançar a dança (da vida). Crédito: Freepik

Somos seres sociais, dependemos uns dos outros desde o nascimento.

Pense comigo, nós já chegamos ao mundo com um nome próprio, uma espécie de código repleto de histórias. Diferente do jacaré ou da gaivota, que nascem em conexão direta com a natureza, sabendo exatamente o que fazer quando ela se revela, ou seja, quando a casca do ovo se quebra; nós, humanos, somos acolhidos e banhados pela linguagem desde o primeiro instante.

Alguém que nos embala e nos nomeia. E essa interface com o mundo, este software, esta intermediação composta pela linguagem e pelo outro, é em si uma forma de negociação... Choramos para mamar, depois aprendemos a engolir o choro. E assim, pouco a pouco, palavra por palavra, código por código, vamos nos lapidando para caber no próprio entorno.

Claro, alguns impulsos serão recalcados, outros restarão expostos, sob supervisão; alguns desejos vingarão, outros se transformarão em sintomas... Mas, independente do resultado, para nós, neuróticos, ou normais, como queira, tudo haverá de ser negociado.

Então, negociar é a arte do humano!

É nossa missão compreender os limites impostos pelos pactos que fazemos com o outro e, ao invés de rompê-los chutando a porta – sob pena de culpa (e esse é um assunto que merece atenção), desfazê-los com cuidado.

Desfazê-los “no talento”... Com jogo de cintura, flexibilidade e gingado, como numa dança.

Mas claro, para desfazer o que quer que seja é preciso, primeiro, reconhecer os pontos de contato, de cola, de conexão... Além de nossas próprias limitações.

E aqui vale a pena falar da culpa por um instante.

Veja, a culpa é um elo com nosso contexto. Uma espécie de mecanismo de defesa que soa o alarme quando ultrapassamos alguma fronteira. Quando vamos além do limite que pactuamos com o outro e com o nosso entorno. E a culpa sempre comparece exigindo reparação, algum preço a se pagar para operacionalizar o conforto do retorno ao estado anterior, quando o pacto negociado estava válido.

Percebe?

Problema é que a culpa não comparece só quando fazemos algo “errado”, mas sobretudo, quando sentimos um golpe de felicidade, um estalo de realização, de entusiasmo, quando ficamos extasiados... É nessa hora que a “alegria a mais” se dá, que a culpa vem e bate!

Ou seja, ela é um bastão que bate quando rompemos o previamente “combinado”. Assim, como pode o sujeito se autorizar a ser bem-sucedido se seu contexto familiar é fracassado? Como pode ele? Se a cada nova conquista ele se sente mais culpado? E se essa culpa é, na verdade, um sintoma ao qual ele é intimamente apegado...?

Soltar, desapegar, descolar... São todos movimentos de ampliação.

Nota: posso dizer por mim, que arrisco e escolho a dança para me curar da culpa e do medo de desagradar, de descumprir... E para me tornar cada vez mais hábil nessa “negociação” de que falo desde o primeiro parágrafo.

Porque no fim das contas é isso: tornar-se habilidoso para realizar o propósito que viemos cumprir por aqui é saber dançar a dança (da vida). É conhecer os limites e ultrapassá-los na base do entusiasmo: sem pressa, sem pausa, sem expectativas, nem garantias, e sobretudo, sem ferir (nem o outro, nem a si).

Aliás, ao contrário, desfazer pactos dolorosos e negociar com o mundo é nutrir no outro o desejo de fazer o mesmo (ir além). Gingando com todo cuidado, como quem desarma uma bomba, ou coloca um bebê para dormir. No talento, esquivando e comparecendo, pouco a pouco, no amor e na linguagem, no ritmo, às vezes manso, às vezes ardido, do autoconhecimento.

Assim penso.

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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